Quando Giovanni Melchiorre Bosco profetizou, em sonho, a terra da promissão que se ergueria entre os paralelos 15º e 20º, de onde jorraria uma fartura de leite e mel, Brasília não era nada além de uma utopia que já grassava no imaginário político desde o século 18, mas que só se concretizaria no governo JK, em 1960. A nova capital, pensada para levar o progresso e o centro nervoso das decisões constitucionais para o interior do vasto território nacional, com efeito, se mostrou mais que uma empreitada hercúlea, senão uma batalha de fé com alta carga mística: somente uma metrópole construída desde o pó pelas mãos do homem poderia catalisar a alma nacional de domá-la para o bem da democracia e da paz.
Vinte anos depois, voltando do exílio voluntário pelo mundo, o cineasta Glauber Rocha se apropriou antropofagicamente – fundindo Camões, Niemeyer, Villa-Lobos e o general Costa e Silva – das visões de Dom Bosco para compor aquela que viria ser sua obra-testamento, A Idade da Terra, que ora chega ao mercado em versão restaurada pela Versátil Home Vídeo e informações extras de qualidade. Este lançamento cumpre seu papel primordial que é reabilitar uma das obras mais complexas, delirantes e incompreendidas do cineasta que ergueu e carregou até a morte a bandeira de um novo cinema brasileiro, liberto das amarras convencionais dos negócios, livre para mergulhar no mais profundo caos do inconsciente coletivo esmagado por uma ditadura que já se alargava por 16 anos, até então.
Atento ao cenário político de seu país, mesmo que à distância, Glauber predizia movimentos estratégicos que só se concretizariam anos depois. Por conta disso, arcou com a fúria da esquerda e com o escárnio da direita em 1974, quando apostou na redemocratização nacional a partir do alinhamento entre o alto comando militar e os intelectuais. Foi assim que conseguiu vislumbrar uma aliança entre o general Golbery do Couto e Silva e o antropólogo Darcy Ribeiro, em carta enviada a Zuenir Ventura. Verdade que não aconteceu dessa maneira, mas Glauber já se mostrava aberto a compreender as evoluções exotéricas dentro dos jogos de poder.
Via, no Peru, uma possibilidade de revolução popular encabeçada pelas Forças Armadas e registrou em filme a Revolução do Cravos, em Portugal, com o documentário coletivo As Armas e o Povo, logo após a tomada de poder das forças contrárias a Marcelo Caetano. Mal interpretado, Glauber mergulhou em suas andanças pelo mundo em busca de uma continuidade para sua poética muito peculiar. Já não filmava com a mesma assiduidade e nem com a mesma lucidez estética e ideológica, mas realizava obras um tanto erráticas e bastante perturbadoras, como Cabeças Cortadas, de 1970, e Claro, de 1975. Lançado ao ostracismo pela intelligentsia do cinema brasileiro, o diretor retornou ao país em 1977, quando publicou seu romance Riverão Sussuarana e se pôs a trabalhar num novo tratamento de um roteiro que já gestava havia algum tempo e que seria sua orgia fílmica última, um recado à arte do futuro próximo, bem como uma diagnóstico místico-pessimista a respeito dos descaminhos da democracia.
A Idade da Terra se sustenta em três pilares histórico-geográficos e um ícone bíblico tornado portador da palavra libertadora. O teatro caótico do filme se desenrola no Rio de Janeiro, Bahia e Brasília, os três polos do governo nacional ao longo da epopeia brasileira. Jesus Cristo é abduzido das cenas controversas de Pasolini e multiplicado por quatro: Cristo Guerrilheiro (Geraldo del Rey), Cristo Militar (Tarcísio Meira), Cristo Negro (Antônio Pitanga) e Cristo Índio (Jece Valadão). Cada um deles transita pelo Planalto Central, Meca de um mundo novo e promissor, às voltas com John Brahms (Maurício do Valle), capitalista americano que deseja ser maior que o deus Sol e finca suas esporas no Terceiro Mundo, uma alegoria anticolonialista cara a Glauber.
Brasília, então, se torna o núcleo de um delírio do inconsciente. Uma encarnação profética da História, com as forças das raças formativas da nação e a profecia do sacerdote italiano. No filme, o Distrito Federal se torna antecessor do fenômeno da pós-modernidade, com os Cristos assimilados pela mazela cotidiana, engolidos pela voracidade da máquina e do capitalismo e transmutados em entes descolados de uma realidade linear, em que arquétipos transitam de forma sincrônica pela arquitetura local e por civilizações diversas, ao mesmo tempo. Essa alegoria confere carnaduras à tais “forças sobrenaturais” que já forçaram renúncias e que, até hoje, regem a dramaturgia da política cotidiana.
A experimentação técnica e narrativa do filme fez com que Glauber fosse achincalhado no Festival de Veneza de 1981. Os efeitos do baque perturbaram o diretor até sua morte, em agosto de 1982, e impediram que a obra fosse devidamente analisada por vetores de uma estética radicalmente inovadora.Um dos elementos mais marcantes da obra é que seu realizador pretendia que os rolos do filme não fossem numerados, possibilitando que se assistisse à A Idade da Terra em qualquer ordem. A Embrafilme, financiadora do trabalho, não permitiu tamanha ousadia, por entender que deveria haver o mínimo de coerência necessária exigida por um mercado engessado. Não obstante, a edição apresentada pela Versátil Home Video traz um recurso que permite ao espectador, hoje, experimentar a proposta glauberiana, selecionando o modo aleatório de exibição, em que o espetáculo épico-onírico ganha a força de um caleidoscópio audiovisual que busca o cerne da psique existencial política brasileira. *Donny Correia é crítico e escritor, mestre e doutor em estética e história da arte pela USP
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