Paulo Pélico
No inicio dessa semana tivemos o acontecimento ansiado por grande parte da produção cultural brasileira há tempos, e para o qual entidades do setor chegaram a trabalhar duramente, mas com modestos resultados: ver a Lei Rouanet tema de um debate nacional.
Lamentavelmente, isso veio a ocorrer pelas razões erradas e acompanhadas de fatos chocantes, como já é sabido. O sentimento predominante na classe é de certo espanto atordoado. Ninguém sabe como avaliar as notícias da Operação Boca Livre.
De fato, ainda é muito cedo para conclusões e o melhor é aguardar as apurações sobre a dimensão das irregularidades, sua abrangência, e se vai além desse grupo investigado. Certos, até o momento, apenas a disposição da classe artística em apoiar incondicionalmente a operação desencadeada pela Polícia Federal e a esperança nos efeitos depurativos do episódio.
Porém, isso é pouco para solucionar pendências imediatas daqueles que vivem do seu trabalho. Para esses, trata-se da dramática situação de enfrentar a abertura de uma crise moral e ética no interior de uma crise econômica já existente, severa e prolongada, com o agravante de que essa primeira tem potencial de lançar suspeitas criminais sobre a toda uma atividade, repartindo um ônus de uma quadrilha. Adicionalmente, essa crise moral e ética obstrui o principal canal de financiamento de projetos artísticos, as leis de renúncia fiscal da cultura.
Como nos ensinam os especialistas, o marketing cultural cria associação de valores, de conceitos, de significados, e é eficiente nisso. As imagens mostradas nacionalmente por todas as mídias, de mandados de busca e apreensão sendo cumpridos nas dependências de empresas patrocinadoras de projetos culturais, deverão ter efeitos devastadores no mercado de patrocínio, com alcances que ainda são difíceis de medir.
Quanto tempo levará até que departamentos jurídicos de organizações autorizem depósitos bancários em conta de projetos culturais, via leis de renúncia fiscal, seja qual for o mecanismo utilizado? Marketing cultural existe para melhorar a imagem institucional de empresas, não para expô-las ao risco.
O outro lado da questão são os produtores com projetos em andamento, e, portanto, com compromissos assumidos, profissionais contratados. O que farão diante de seus cronogramas congelados? Trata-se de um quadro grave.
A resistência do empresário brasileiro ao marketing cultural, mesmo com benefício fiscal, sempre foi considerável, situação que vinha sendo progressivamente revertida ao longo das ultimas décadas. Agora esse processo sofrerá retrocessos, e seus efeitos recairão, não tenham dúvidas, sobre o pequeno produtor.
A questão é simples: a produção cultural brasileira de pequeno porte tem a aprovação de seus projetos inteiramente dependente da política de comunicação das empresas patrocinadoras, que, naturalmente, seguem diretrizes de governança, o que inclui segurança jurídica, proteção e controle de imagem.
Já os projetos culturais pertencentes às entidades do poder público dependem apenas de decisões políticas, geralmente envolvendo empresas estatais. Os empreendimentos culturais desenvolvidos pelas instituições corporativas, por sua vez, são formulados e viabilizados por ato de vontade (autopatrocinado), a partir de decisões internas de seus dirigentes. A assimetria concorrencial já existente entre o pequeno produtor e as grandes instituições, agora será elevada a níveis inéditos.
Para produtor cultural independente os acontecimentos da última terça-feira foram uma espécie de rompimento da barragem de Mariana. Para ele, é como se a Lei Rouanet já tivesse sido revogada.
Apesar de toda esse panorama desfavorável, o que se destacou na Operação Boca Livre foi a reação da opinião pública em relação às leis da cultura, tema que talvez merecesse estudos sociológicos. Trata-se de algo que está presente não só no episódio aqui em questão, mas, recuando 30 anos no tempo, ao advento das leis de renúncia fiscal para a cultura no Brasil, que alteraram definitivamente o panorama da produção artística, levando o setor à profissionalização.
Sabemos que não existem leis imunes a fraudes. A nossa legislação do Imposto de Renda, a despeito do seu rigor, não tem sido capaz de livrar o Brasil de sonegadores. A lei das licitações jamais nos forneceu garantias totais contra vícios em concorrências públicas. Por que uma lei de fomento à cultura deveria ser infalível? Quando irregularidades são comprovadas em outros setores, o que se exige é melhor controle, fiscalização, medidas inibidoras de fraudes, nunca o fim dos mecanismos.
Basta uma espiada na internet, principalmente nos sites de notícias, para identificar uma tendência majoritária pela extinção da Lei Rouanet, que, se acontecer, apenas repetirá o que houve com a Lei Sarney, sua predecessora, revogada numa canetada pelo então presidente Fernando Collor de Mello, sem qualquer debate público.
O presidente Collor, aquele que fora nosso primeiro eleito pelo voto direto, pós-ditadura militar, e que dois anos depois, acossado por denúncias de corrupção, renunciaria ao seu mandato para evitar a destituição pelo Congresso.
Felizmente, na ocasião, ninguém teve a má ideia de propor o fim do instituto da Presidência da Republica, eleita pelo voto popular, devido às irregularidades comprovadas. Fato que, aliás, poderá se repetir nas próximas semanas quando a atual presidente será julgada pelo Senado, desta vez por crime de responsabilidade.
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