Ele introduziu uma palavra na língua do mundo: Shoah. Foi buscá-la no judaísmo e fez dessa palavra assustadora que significa catástrofe o título de um filme de 1985. O mundo logo a adotou. Desde então, o massacre de 6 milhões de judeus por Hitler, um dos acontecimentos mais inconcebíveis da história, passou a ser assim chamado em todos os países: Shoah. O homem que fez esse filme gigantesco (tem nove horas e meia) se chamava Claude Lanzmann. Morreu no dia 5 de julho, aos 92 anos.
Shoah provocou tal choque que nos esquecemos até de que Claude Lanzmann fez outras obras excepcionais, sejam filmes (O Último dos Injustos, Napalm), sejam livros como A Lebre da Patagônia – Memórias (2009). Lanzmann era fascinado pela vida. Devorava carne vermelha, seduzia mulheres e era amigo dos grandes de sua época. Quando gostava de alguém, gostava com a mesma ferocidade com que destroçava uma bisteca de boi. Quando não gostava, dizia isso com sua voz de trovão.
(Conto aqui uma historinha. Um amigo, um escritor marroquino, aliás, excelente, um dia me disse: “Se você quiser se tornar antissemita, é muito simples. Basta passar meia hora na companhia de Lanzmann e será antissemita por toda a eternidade”.)
Claude Lanzmann nasceu perto de Paris em uma família originária da Bielorrússia que vivia na França havia algum tempo. Foi no Liceu Henry IV, antes da 2ª Guerra, que o judeu agnóstico encontrou o antissemitismo. Ele ficou estupefato ao ver como as salas de aula da burguesia francesa estavam infectadas por um ódio pegajoso. Foi um choque, mas Lanzmann permaneceu passivo. Após a guerra, ele leu A Questão Judaica, de Jean-Paul Sartre. “Sartre me curou, me livrou da vergonha de ser judeu. A cada linha, eu renascia.”
Sartre, então no auge da glória, dirigia uma revista, Les Temps Modernes. Lanzmann enviou alguns artigos. Sartre publicou e convidou-o a participar das reuniões de pauta. Ali, ele conheceu intelectuais – Deleuze, Merleau-Ponty, Rezvani – e a companheira de Sartre, Simone de Beauvoir. “Adorei sua voz velada, seus olhos azuis, a pureza de seu rosto e, acima de tudo, suas narinas”, contava Lazmann.
Militante anticolonialista, grande admirador de Franz Fanon, dos terceiro-mundistas e dos anarquistas, impetuoso, rabugento, caloroso, defensor entusiasta do Exército israelense, seus caminhos às vezes são confusos, quase incompreensíveis. Com Simone de Beauvoir, já famosa com o livro O Segundo Sexo (inspirador das primeiras feministas) e com Sartre, Lanzmann conhece os pontos explosivos e febris do mundo.
Seus artigos, seus primeiros livros, seus primeiro filmes, atraíram as atenções para esse personagem rude, talentoso e inflamado. Após sete anos de um trabalho desgastante, surge sua grande obra, Shoah. O mundo ficou incrédulo. A “solução final”, um dos momentos mais ignóbeis da história humana, de sua vergonha e de sua loucura, embora continuasse opaco e inconciliável, era por fim representado.
“É pura obra-prima”, disse Simone de Beauvoir. “O filme tem magia, e magia não se explica. Lemos após a guerra uma avalanche de testemunhos sobre os guetos e os campos de extermínio. Ficamos então aturdidos, mas, ao ver esse filme, nos demos conta de que não sabíamos de nada. Nem ficção nem documentário, Shoah recria o passado, os lugares, as vozes, os rostos. A grande arte de Claude Lanzmann é fazer os lugares falarem, ressuscitá-los por meio da voz e, para além das palavras, exprimir o indizível dos rostos.” Como comentar em poucas linhas essa obra titânica de nove horas e meia de projeção? Só podemos dizer que o filme não se compara a nenhuma das outras obras, algumas magníficas, que também visitaram os porões do nada.
Lanzmann fez um filme que não é ficção nem documentário, não tem uma só imagem de arquivo – apenas testemunhos de sobreviventes da longa noite e as paisagens nas quais se desenrolou o indizível e inesquecível crime. / Tradução de Roberto Muniz
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