Nossos movimentos negros – em suas variadas vertentes racialistas – exibem um quadro mental interessante. Regra geral, lemos Gilberto Freyre, aprendemos muitas coisas, apreciamos seus “insights”, incorporamos algumas de suas teses, discordamos de outras e seguimos adiante. Os racialistas neonegros, não: são os únicos que acreditam que tudo que o pensador pernambucano escreve é verdade absoluta. Quando o leem, claro – que a maioria o ataca sem conhecer sua obra, na base do típico mimetismo militante que tão bem conhecemos: ativistas menores repetindo mecanicamente o que dizem seus superiores.
Ou seja: a militância neonegra estacionou na obra de Freyre. Aceita como dogma o que ele diz, apenas invertendo os sinais: o que Freyre celebra, os neonegros condenam. Mas não questionam o grau de veracidade das afirmações categóricas do sociólogo. Assim, se Freyre louva a mestiçagem, os racialistas a estigmatizam. Mas não discutem se a descrição que Freyre faz do processo corresponde aos fatos. É uma espécie de sacralização às avessas.
Vejamos. É óbvio que Freyre fala das mesclas genéticas entre brancos e índios, entre brancos e negros, entre pretos e índios, assim como, em pauta mais sociológica, da miscigenação envolvendo as diversas camadas sociais: senhores e escravos; pretos, indígenas e brancos pobres. Mas é igualmente certo que o que mais se projeta, dos escritos de Freyre, é a mistura genética entre senhores brancos e negras escravizadas. Trata-se de um recorte, OK. Mas acentuado ao extremo pelos nossos atuais racialistas neonegros, numa leitura seletiva dos textos do sociólogo (e isto é feito com diversos outros aspectos da obra freiriana; por exemplo, os ativistas neonegros fecham os olhos para não admitir que Freyre foi um dos pensadores brasileiros que mais vigorosamente descreveu e condenou a violência vigente na sociedade escravocrata).
Nessa direção, Freyre privilegia a figura do macho senhorial branco emprenhando pretas. É uma miscigenação que se dá entre membros da camada social dominante e seres situados na base da hierarquia da sociedade escravista colonial. Mas a verdade é que não temos como aceitar que foi principalmente nesses termos que aconteceu a mestiçagem brasileira. Muitíssimo pelo contrário. Os senhores escravistas formavam um contingente mínimo da população que vivia no Brasil nos primeiros tempos coloniais. Mesmo que passassem o dia inteiro na cama, consumindo toneladas de afrodisíacos e fazendo sexo sem parar, não teriam como monopolizar ou sequer centralizar os relacionamentos sexuais interétnicos na sociedade que aqui se foi configurando.
Outros estudiosos apontaram isso. Como o Sérgio Buarque de Holanda de Raízes do Brasil, chamando a atenção para o fato de que, já em Portugal, era grande a miscigenação envolvendo a população branca mais pobre (o “povo baixo”) e os escravos negros importados da África. E isto se repetiu na chamada América Portuguesa. Aqui, a quantidade de brancos pobres era muito superior à de senhores, obviamente. Todos os dados disponíveis revelam esta realidade demográfica. A classe senhorial dominante constituía um grupelho. A vasta maioria da população era composta de brancos pobres, índios e negros. E foi exatamente aqui, como não poderia deixar de ser, que a mestiçagem se processou em larga escala. Logo, a maioria das mesclas genéticas ocorreu em meio à maioria da população.
Apenas para se ter uma ideia, relativa ao primeiro século da colonização, lembre-se a informação de que Thomé de Sousa trouxe para cá 600 soldados e 400 degredados. Eram quase todos bem pobres. Vejam-se ainda números fornecidos por Fernão Cardim, então presente em nossos trópicos, registrando que, na década de 1580, a Bahia contava com 36 engenhos, cada qual com o seu senhor, obviamente. É muito pouco senhor para o número de escravos necessários para a produção do açúcar. Nessa mesma época, Salvador e o Recôncavo teriam por volta de uns 15 mil habitantes (3 mil “vizinhos portugueses”, 8 mil “índios christãos”, 3 ou 4 mil “escravos de Guiné”). Para esses 15 mil moradores, além daqueles 36 senhores de engenho, tínhamos o governador, pelo menos um grande fazendeiro criador de gado bovino, alguns mercadores, o bispo e um punhadito de “officiaes e justiças de Sua Magestade”. Era muito pouco. Gabriel Soares, no Tratado Descritivo do Brasil em 1587, fala de pouco mais de 100 pessoas no topo da hierarquia social baiana. Enfim, a classe dominante nunca foi numericamente significativa.
E a situação não mudou nos séculos seguintes (na segunda metade do século 17, quase não havia portugueses no Rio de Janeiro, só “umas relíquias de povoadores”, como se lê em documento da época). Pelo contrário: o que aumentou, espetacularmente, foi o número de negros escravizados. Basta lembrar que, entre 1740 e 1780, desembarcaram no Recife mais de 90 mil escravos africanos, vindos principalmente de Angola. O Brasil foi se povoando mais e mais de pretos africanos escravizados. Nossos historiadores e antropólogos estão cansados de se referir a essas movimentações demográficas, que se vão sucedendo no tempo e se expandindo no espaço.
Mas o que quero realçar é que o grosso da mestiçagem se deu entre os grupos sociais subalternos ou dominados: entre brancos pobres, índios servis ou semisservis, e pretos escravos, livres ou libertos. Eram misturas se multiplicando na periferia pobre das vilas e cidades coloniais, nas pequenas lavouras, em quilombos, nos portos e comunidades pesqueiras, nas vizinhanças vegetais dos engenhos, em fazendas e fazendolas, nos múltiplos caminhos do povoamento do futuro país. E o mais importante: depois das miscigenações iniciais, a mestiçagem vai passar a se processar, evidentemente, em meio a uma população já majoritariamente mestiça, entre mamelucos, mulatos e cafuzos. É nesse contexto que Antonil, escrevendo ainda em 1711, poderá reproduzir um provérbio da época, dizendo que o Brasil era o inferno dos pretos, o purgatório dos brancos e o paraíso dos mulatos e das mulatas.
Bem mais recentemente, em seu livro O Brasil Inevitável (onde o texto que compus para as “orelhas” foi estuprado por um outro escrito que não é de minha autoria, onde aparece um verbo que considero nefasto: “conscientizar”), o antropólogo Mércio Gomes resolveu também tocar na tecla fundamental da mestiçagem como fenômeno essencialmente popular – e não como violência física senhorial, coisa que de fato ocorreu, mas foi decididamente secundária em nosso vasto panorama de mesclas biológicas.
Foi fora do círculo dos poderosos senhores escravagistas “que a mestiçagem medrou e se multiplicou”, escreve Mércio. Acrescentando: “...uma vez formadas as primeiras gerações de mestiços, a mestiçagem correu solta pelos campos e vilas”. Ou ainda: a mestiçagem “se desdobrou entre os novos mestiços e mestiças com índios e índias, e com negros e negras, tanto mais que, por esse processo e com intensidade espantosa, formou-se o segmento populacional mais amplo da sociedade colonial, constituindo o estamento social subordinado da futura sociedade brasileira”.
É isso aí. E, para finalizar, quero fazer duas observações. A primeira para lembrar e sublinhar que, historicamente, o sentimento de ser brasileiro, ou de uma diferença nossa, com relação a Portugal, vai se enraizar e se espalhar, primeiramente, em meio à população mestiça que não ocupava o cimo da nossa hierarquia social, a exemplo daqueles mulatos que promoveram a chamada conspiração dos alfaiates, na Bahia setecentista. A segunda para, voltando a Freyre, assinalar algo que considero de alta relevância: Freyre combateu a ideia da inferioridade mental da raça negra e fez o elogio aberto da mestiçagem em momento contemporâneo ao da ascensão do nazismo na Europa – nazismo que, como se sabe, abominava e pretendeu banir as misturas genéticas, atacando implacavelmente tudo que fosse mestiço. Trata-se, portanto, de ver Casa-Grande & Senzala, entre outras e muitas coisas, como afirmação de uma postura antirracista brasileira no mundo.*ANTONIO RISÉRIO É ANTROPÓLOGO, POETA E ROMANCISTA, AUTOR DE ‘A UTOPIA BRASILEIRA E OS MOVIMENTOS NEGROS’ (EDITORA 34) E ‘QUE VOCÊ É ESSE?’ (RECORD)
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