Ao abordar a questão judaica em novo livro, a psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco insere-se numa linhagem de pensadores da qual fazem parte, entre outros, Karl Marx e Jean-Paul Sartre. A reflexão de Roudinesco, porém, é de caráter bem mais fragmentário e seu Retorno à Questão Judaica dificilmente se encaixa numa categoria específica das Humanidades. Mescla de história, sociologia, psicologia, crítica literária e crônica sobre a vida intelectual francesa, o livro é um tanto errático - como, poderia-se argumentar, convém à complexidade do tema.Nos primeiros capítulos são traçadas as origens do preconceito religioso antijudaico que surge no reinado de Teodósio, no século 4.º, quando o cristianismo se torna religião de Estado em Roma, e perdura até o século 19. Buscava-se converter os judeus, até a força, e levá-los a aceitar Jesus Cristo como o Messias, anátema na doutrina judaica. A autora, que esteve em Campinas, São Paulo e Rio esta semana, participando de debates e palestras, negligencia a Inquisição e passa da Idade Média diretamente ao Século das Luzes, com suas promessas de plena integração social e política dos judeus nas nações europeias, bem como ao surgimento do antissemitismo racial, fundamentado, entre outros, no pensamento de Arthur de Gobineau, que atribui aos membros da etnia judaica características genéticas que os tornariam inferiores aos demais europeus. Essa doutrina, como se sabe, serviu de base para o nazismo e distingue-se do antijudaísmo religioso por sequer considerar possível qualquer tipo de "regeneração", pretendida pelo antijudaísmo religioso. Assentada sobre uma pseudobiologia, coincide com os nacionalismos da Europa Central do século 19 e marca o fim das aspirações de autoredenção e de integração em Estados seculares dos judeus europeus. O fim do século 19 marca, também, o advento do sionismo - ideologia judaica que, rompendo com a tradição religiosa e mística, segundo a qual um retorno dos judeus à terra da promissão bíblica só seria possível por meio da intervenção divina, passa a lutar pelo estabelecimento de um estado nacional judaico no que era então a Palestina otomana e substitui, por assim dizer, fé por ação política e trabalho. Se não há grande novidade nessa parte histórica do livro, ela é fluente, muito bem informada e constrói um panorama coerente. Os capítulos subsequentes voltam-se sobre a questão judaica na Europa do século 20, abordada numa multiplicidade de desdobramentos. O assunto adquire, a partir daí, uma dimensão ciclópica e, diante da multiplicidade de acontecimentos e ideias discutidas, a autora dá saltos que vão do geral ao particular e vice-versa, às vezes de forma mirabolante. Espanta, por exemplo, que, da discussão de sionismo e colonialismo ela passe diretamente ao destino de Marcel Proust ou à investigação sobre a judeidade de Freud, centrada na transmissão de um legado, no estudo dos textos e na aceitação do exílio. Também são passadas em revista trajetórias de pensadores fulcrais como Hannah Arendt, assim como o passado pró-nazista de Carl Gustav Jung, convenientemente esquecido no pós-guerra. São citados textos em que o psiquiatra suíço subscreve às teses de inferioridade judaica, e considera Hitler como "um magnífico despertador da alma germânica" e o nacional-socialismo como "fenômeno grandioso". Os capítulos finais do livro voltam-se sobre a perplexidade incontornável causada pelo genocídio, visto como uma censura que marca a reflexão histórica e filosófica, assim como sobre o surgimento do Estado de Israel, na encruzilhada entre tradição bíblica e o caráter universal e democrático dos Estados ocidentais. O negacionismo do genocídio, em suas múltiplas vertentes, âmbito em que se encontram a extrema direita, a extrema esquerda e amplos setores do mundo muçulmano, é também discutido juntamente com as perversidades de diferentes figuras do cenário intelectual francês, como por exemplo Louis-Ferdinand Céline e Jean Genet, num capítulo que revela tanto o caráter passional dos humanistas franceses de todo o espectro político quanto o status crucial atribuído à escrita, à palavra, ao vocabulário e ao léxico na França, país onde "todo combate é também uma questão de escrita".Em meio a esta paixão pela palavra escrita, através da qual a autora busca decifrar esta outra inexplicável paixão que é o antissemitismo, muitas vezes perde-se o fio da meada e, sobretudo nos capítulos finais, a multiplicação de figuras secundárias da intelectualidade francesa, com suas opiniões contrapostas, torna-se enfadonha. Mas, para além da importância atribuída ao embate de opiniões, emerge do livro a ideia de que homem nenhum pode ser julgado em função de suas origens, raízes ou comunidade. Vale, portanto, como um alerta para o absurdo que há em todo tipo de generalização fácil - e que lamentavelmente é moeda corrente nos discursos políticos. LUIS S. KRAUSZ É PROFESSOR DE LITERATURA HEBRAICA E JUDAICA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO E AUTOR DE AS MUSAS: POESIA E DIVINDADE NA GRÉCIA ARCAICA E RITUAIS CREPUSCULARES: JOSEPH ROTH E A NOSTALGIA AUSTRO-JUDAICA (AMBOS DA EDUSP)
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