Adalgisa Nery é redescoberta e tem sua poesia reunida

’Do Fim ao Princípio’ mostra a produção literária de uma mulher que lutou pelos direitos femininos como deputada

PUBLICIDADE

Por Giovana Proença

Ao lado de nomes incontornáveis da cultura brasileira, como o pintor Ismael Nery e o poeta Carlos Drummond de Andrade, esteve uma mulher. Adalgisa Nery: bela, altiva e detentora de uma das mais potentes vozes poéticas do século 20. Em entrevista ao mineiro Drummond, Adalgisa sintetiza a força de seus versos: “A poesia na tristeza, a poesia no pranto, a poesia também no riso... A poesia em tudo que fiz”.

Além de Ismael Nery, seu primeiro marido, Adalgisa foi retratada nas telas de Candido Portinari, Diego Rivera e Frida Kahlo. Uma rápida busca revela o olhar austero, misterioso e o porte distinto da poeta nas pinceladas de seus retratistas. Mais do que a musa dos amigos Drummond, Jorge de Lima e Murilo Mendes, Adalgisa colecionou elogios de seus contemporâneos – dentre eles, também Manuel Bandeira e Mário de Andrade –, impressionados com seus versos.

Autorretrato do pintor Ismael Nery com sua mulher, a poeta Adalgisa Nery  Foto: Acervo Ismael Nery

PUBLICIDADE

Ainda assim, o título de sua biografia (escrita por Ana Arruda Callado): Adalgisa Nery: Muito Amada e Muito Só, resume bem o esquecimento de sua obra. Fora das prateleiras há meio século, a poesia completa de Adalgisa é reunida em Do Fim ao Princípio, com organização de Ramon Nunes Mello.

A José Olympio, casa editorial da poeta, já havia relançado os seus dois romances, A Imaginária (1959), cujo teor autobiográfico remete à infância de Adalgisa, ao turbulento casamento com Ismael Nery em A Neblina (1972). Do Fim ao Princípio reúne os sete títulos lançados pela poeta de 1937 até 1973. A bagagem poética de Adalgisa revela uma produção profícua e contínua, cuja matéria une as miudezas do viver à metafísica divina.

Os versos de Adalgisa Nery rompem com a ideia de um Modernismo maiúsculo na poesia, de modo que evidencia o caráter diverso do movimento. Apesar desse isolamento, há correspondências entre o canto de Adalgisa e o de Jorge de Lima e Murilo Mendes, outros desviantes do modernismo tradicional, representantes da poesia metafísica. A poeta também é influenciada pelo essencialismo de Ismael Nery, que consiste na elevação ao plano Universal, a partir da seleção do que é essencial à existência.

Publicidade

Adalgisa apresenta um eu lírico essencialmente feminino que não teme se colocar dentro da poesia. Esse eu poético toca mazelas como a miséria e o sofrimento humano

Adalgisa apresenta um eu lírico essencialmente feminino que não teme se colocar dentro da poesia. Esse eu poético toca mazelas como a miséria e o sofrimento humano e revela uma poesia metafísica, na busca pelo divino. Os mistérios do Criador são perscrutados em uma constante procura. Nessa linha, a natureza e seus elementos são uma firme presença, o que ressoa o transcendental da obra da poeta norte-americana Emily Dickinson.

O encontro do alto e do baixo dentro da poesia de Adalgisa leva ao sublime, como o contraste que permite a poeta transcender este plano nos versos de “Eu anunciarei” (Poemas, 1937): “Um dia meu corpo inútil em suas formas/ Será plantado junto à raiz dos arbustos/ E só darão sombra aos vermes./ Nesse dia minha alma purificada,/ Transformada pela podridão das minhas carnes,/ Riscará luminosa os Ceús/ E anunciará a grandeza das origens/ Por todo o Ilimitado,/ Por toda a Eternidade”.

A poeta anuncia a vontade de ser múltipla, de estar em todas as coisas. Há na poesia de Adalgisa o anseio por expandir-se, por tocar os cantos intocáveis da existência humana. Aliado a isso, está o desejo de metamorfose. O eu lírico anuncia em “Sou tudo no mundo da abstração” (A Mulher Ausente, de 1940): “E assim posso ser hoje/ Uma pequena andorinha/ À procura de um telhado” ou “Agora quero ser árvore,/ Copada, de frutos bem derreada/ De flores muito infestada”.

A escritora Hilda Hilst, nos anos 1980, na Casa do Sol  Foto: Acervo do Instituto Hilda Hilst

O erotismo se insinua na obra poética de Adalgisa, de uma só vez ardente e sutil, ressoando a produção de contemporâneas, como a primeira fase da poesia de Hilda Hilst e a paraense Olga Savary. Adalgisa escreve: “Mas o desejo de beijar forte com lábios entreabertos/ E olhos cerrados docemente. / Basta que eu me lembre da morte para que todo o amargor desta distância/ Seja uma razão que reconforte”. A morte não assusta a poeta, que afirma: “Vida na vida/ Cantando, cantando sempre/ Na infinita vida da morte”.

A poética de Adalgisa Nery pode ser sintetizada por seu verso final no poema Cemitério Adalgisa, uma vívida competição entre “Destruição e Criação”. Com a publicação de Do Fim ao Princípio, a voz da musa de tantos outros poetas passa a ecoar por ela própria. Ao contemplar a sua produção, estamos diante da mulher ausente, em referência ao título de seu segundo livro. Adalgisa mostra que quando se trata de poesia, é preciso iluminar a face mais oculta.

Publicidade

DO FIM AO PRINCÍPIO

ADALGISA NERY

JOSÉ OLYMPIO EDITORA

560 PÁGINAS

R$ 190

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.