Se a escritora mineira Adélia Prado estivesse em campanha política, certamente teria conseguido, em menos de duas horas, 700 votos no último domingo, quando emocionou a platéia da 4.ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) ao ler seu poema "As Mortes Sucessivas", em homenagem ao pai morto, e, depois, enfrentar mais quatro horas de autógrafos. Muita gente chorou, porque a explicação teórica da poeta para a beleza e transcendência da obra de arte estava sendo colocada à prova naquele exato momento. Por uma dessas razões que a razão não explica, o choro catártico traduzia, enfim, o choque de uma manifestação teofânica, uma revelação a que já estão acostumados os leitores de Adélia Prado, de quem a Record está relançando toda a obra poética e em prosa. Pouco antes da primeira palestra no último dia da Flip, ela recebeu o Estado para uma entrevista exclusiva no hotel onde estava hospedada. Simultaneamente, a duas mesas de distância, outra mulher falava com um repórter, a escritora americana Toni Morrison, ganhadora do prêmio Nobel de literatura de 1993. Surpresa, Adélia perguntou, curiosa, qual era o tema de sua literatura. Foi o bastante para que tivesse início uma conversa sobre militância política, intolerância e globalização. Para surpresa de quem a quer presa numa sacristia, por ser uma escritora católica, Adélia não escapou de perguntas sobre terrorismo, corrupção no governo e até sobre Sade. Como o marquês, a brasileira assume que a condição existencial é mesmo miserável. Estamos condenados a descobrir a beleza do mundo. Para isso, diz, temos de aceitar a alteridade, a diferença que nos torna iguais. Em outras palavras, a cultura do outro. Foi esse o fio condutor da conversa em que revelou seu desapontamento com Lula e sua admiração pelo radicalismo de homens-bomba. Em seu recente livro "Quero Minha Mãe" (Record), Adélia Prado cita, logo no começo, um dos primeiros filmes do russo Andrei Tarkovski, "A Infância de Ivan", ao descrever Olímpia, personagem principal, como uma mulher dividida entre o que deveria ter feito e o que quer fazer. Olímpia inveja, enfim, a liberdade do pequeno Ivan, que, perdido entre trincheiras, tenta sobreviver numa guerra suja com a integridade de sua alma infantil, assumindo com força radical a ira e a virtude das crianças. Nesta entrevista, a escritora mineira fala também desse sentimento. Longe do papel missionário de catequizadora que lhe querem impor, Adélia surge como voz insurgente, inconformada com a passividade do mundo diante da dominação hegemônica das grandes potências. Ela toma posição não como militante política, mas como escritora consciente do papel oracular da poesia e do caráter epifânico da arte. Segue, enfim, o principal ensinamento de São Paulo: "Agir contra a convicção é pecado." E enfrenta os leões na arena ideológica. Abaixo, a voz e as opiniões da poeta. Você já teve alguma experiência mística por meio da arte? Toda arte é uma teofania. Li um ensaio de Jung, "Resposta a Jó", que me deixou perturbada. Fiquei com a impressão de estar diante de uma nova teologia. Esse livro mexeu comigo de maneira violenta. Há filmes que me deixaram também perturbada, como os de Sokurov, especialmente "Moloch". Acho que mais que a literatura, o cinema é que está falando das coisas. Apesar de não gostar de política, há muito tempo você não toca no assunto, embora tenha exercido cargos públicos. Como vê o quadro atual? Só aceitei ser secretária de Cultura de Divinópolis por amizade ao então prefeito da cidade. Não conhecia nada da burocracia do cargo e sofri demais. Fiz o que pude, mas não é meu lugar. Quanto ao quadro atual, acho melhor a gente organizar uma romaria a Aparecida do Norte. Vou votar nulo. Nenhum dos candidatos me dá confiança para entregar meu voto, o meu desejo de felicidade para o Brasil. Nosso Congresso, digo, a qualidade do nosso Congresso, é um horror. Você votou em Lula? Votei, andei com botton dele no peito desde a primeira vez que ele disputou a eleição. Tinha um retrato dele, ainda de barba preta, grudado na geladeira. Ficou lá até quase a última eleição. Agora vou colocar dentro do freezer. Resultou em nada. Fiquei muito triste. Alguns escritores tentaram buscar uma definição para o caráter brasileiro, entre eles Mário de Andrade. Você arriscaria um palpite? Não. Esse caráter não existe porque nós não temos ainda consciência de povo ou de nação. Temos de crescer. Esse caráter ainda está por ser definido. Se isso acontecesse, o país inteiro poderia cair numa desobediência civil. O discurso político, o voto, tudo é pró-forma. Vivemos hoje uma situação incômoda com a globalização. A criação da União Européia, por exemplo, trouxe com ela a destruição de culturas regionais, fazendo com que pessoas tenham até vergonha do dialeto que falam e aspirem ao status de cidadão europeu. Engraçado, porque estou justamente lendo Baudrillard e ele fala, em "A Transparência do Mal", que é uma falácia a União Européia tentar fazer desses países uma unidade, que nós precisamos mesmo é de alteridade, pois é a sua ausência que está gerando essa doença. A globalização é falsa. Os povos precisam da alteridade. Eu preciso da diferença para me afirmar. Há coisas boas na UE, como uma moeda comum, o mesmo passaporte. Mas onde vamos fazer piquenique? Sei que tem uma ameaça velada no meio dessas coisas, pois não se trata de uma tentativa de fraternidade real. Tem um outro objetivo que não é fraterno. Enquanto o interesse for só econômico, nós estamos literalmente desgraçados, porque é falso. Já que falamos de globalização, a crise energética levou grandes potências a invadir países, usando como argumento a bandeira da democracia. Não lhe parece falso? Falso demais. Está faltando exatamente uma coisa que provenha do fundo, dos afetos. Não dá para concordar com terroristas, mas é admirável que ainda existam. Eles representam uma fronteira, uma barreira que diz: "Não passa daqui não, que eu sou um homem-bomba." Está equivocado? Está, mas é admirável, ele é humano. O outro não é. É um mentiroso. Sabe que Tariq Ali falou exatamente isso aqui na Flip e foi vaiado? Ah, ele falou? Dou o maior apoio. Eu descobri a razão cíclica, interna, a verdade da guerra. É um ato político real. O terrorista tem essa atitude real, verdadeira, não esse faz-de-conta dos grandes que se reúnem para decidir o destino do mundo. O terrorista é o limite. Talvez seja necessário mesmo esse padecimento universal para que o homem recupere alguns valores. Tem hora que não tem jeito não. Não é aquilo, por exemplo, que eu escutei de um intelectual lá em Cuba, uma coisa que me deixou sufocada de espanto: "Não tem revolução que se sustente sem paredão." Isso é outra coisa. Paredão é você acabar com o inimigo para ser o próprio. Não é disso que se trata, mas de outra coisa. É de ações originadas da convicção. Há uma tendência na literatura atual à intersecção entre a linguagem jornalística e a narrativa ficcional. Como você vê esse contágio? Existe bom e mau contágio. Jornalismo é uma categoria separada. Sua primeira obrigação é a de informar. O jornalismo enfeitado, literário, é muito ruim. Ficção é outra coisa. Não dá para chamar de jornalismo literário. Há ficções que nasceram de experiências jornalísticas, mas, como propósito, é desastroso. Nós estamos aqui ao lado de uma senhora que ganhou o Nobel de 1993, Toni Morrison, que começou a escrever justamente porque não via nem os jornais nem os escritores de ficção discutirem, nos idos de 1960, o papel da mulher negra na sociedade americana... Não conheço a obra da Toni Morrison, mas se alguém escreve só para defender a causa negra, isso pode ser igualmente desastroso. Toda obra que você ideologiza, instrumentaliza, está muito perto do fracasso, porque a obra verdadeira não é criação sua. Nesse sentido, a pessoa pode ter um discurso político, filosófico ou religioso muito bonito, mas artístico, não. A verdadeira arte não é sua. É como fazer música ou poesia religiosa. O resultado é insuportável porque você vê o andaime da obra, a intenção. "Memórias do Cárcere" não é bom por ser um livro de prisão de Graciliano Ramos. É bom porque é boa literatura. Na abertura surgiram muitos livros sobre os anos de chumbo da ditadura militar, que logo ficaram datados. A obra verdadeira não tem data. Você lê os pré-socráticos e o texto está fresquinho, parece ter sido feito de manhã. O que é um clássico para você? Um clássico é uma obra sem data e que tem interesse universal. A dorzinha daquele grego que viveu antes de Cristo é a minha, eu me reconheço nela. Quando Drummond recomendou a publicação de "Bagagem", automaticamente apadrinhou você. Qual é a sua aposta entre os poetas jovens? Tenho muita dificuldade em ler todo mundo. Tem gente muito boa aparecendo, mas não dou conta nem de citar. Tem um poeta chamado Jorge Emil que eu recomendei para a Bom Texto (a editora carioca, que lançou "O Dia Múltiplo", de autoria do poeta mineiro). Ele também é um ator excelente, um talento real. A poesia está viva, graças a Deus. Dos poetas mais antigos, quem você lê com mais freqüência? Drummond. É bom demais. Tem uns poetas que eu não conhecia: Eliodoro Lombardi, John Donne, Gerard Manley Hopkins, e me deu uma alegria profunda ler seus poemas. Descobri que o mundo está vivo, que existe uma palpitação vital nesses lugares da mística, da arte. Você encontra santos, pessoas que devotam sua vida ao transcendente, ao divino, ao amor, e vive esse heroísmo cotidiano. Pasolini também falava que só os santos e loucos - incluindo poetas nessa categoria - eram dignos de confiança, por serem os únicos com coragem para dizer não ao mundo. É verdade. Essas pessoas têm uma atração grande. São verdadeiras. Quando você conhece um santo na vida real, fica admirado com essa coragem cotidiana. Eu quero isso para mim. Você já conheceu algum? Já. Tem uma pessoa que conheço que eu quero estar sempre perto, pegando aquela radiação gostosa. É uma pessoa admirável, que vive a experiência da fé e essa busca de forma radical. Qual é a função de um santo? O santo revela o amor de Deus . Ele confirma que somos criaturas feitas por alguém que nos ama. É aquele que fala: "Descansa, minha filha. Por que você está tão estressada?" São pessoas que vivem a fé de maneira radical, ou seja, têm confiança. O que causa o estresse é exatamente o susto: "Ai, e agora, Nossa Senhora, o que eu vou fazer?" Se você for realmente integrado, foge da esquizofrenia. Minha fé ainda é uma fé pequena. E essa integração com o divino, com o transcendente, muitas pessoas têm isso de maneira não doutrinária. Como é sua relação com autores que não se harmonizam com seus pontos de vista, digamos, o marquês de Sade? Mas o marquês de Sade é religioso (ri). Aldous Huxley me perturbou muito mais quando era adolescente. Lembro de ter lido, não sei se em "Contraponto", que São Francisco beijava leprosos por não dar conta de beijar uma mulher. "O que é isso, onde já se viu?", pensei, espantada. Hoje vejo que essas provocações são muito boas, porque não deixam você virar fanático, radical. Você se transforma realmente num interlocutor, sem prejuízo de suas convicções. Acho isso muito bom.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.