Afinal, um romance com final feliz

'Quéreas & Calírroe’, literatura grega do século I d.C, é um bom antídoto contra a tragédia de todos os tempos

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Atualização:

Talvez andemos precisados, leitor/a, dos finais felizes que a ficção pode nos dar; mas, bem mais que isso, da consciência de que a deusa Fortuna (para os latinos; Týkhe, para os gregos) trama infelicidades, que podem ou não seguir seu curso até o final. O pensamento mítico, tão distante de nossa racionalidade e, mesmo, de nossa religiosidade, pode ser – com sua concretude imagética e a personificação de aspectos fundamentais do mundo, os deuses, que agem sobre nós – uma resposta iluminadora à nossa eterna busca de compreensão do que vivemos; assim o é, certamente, com a noção de Fortuna.

Sobre o efeito tranquilizador de um final feliz, diremos que ele nos é propiciado, modelarmente, por Quéreas & Calírroe, romance grego do século I d.C, de Cáriton de Afrodísias, apresentado agora na tradução de Adriane Duarte. O gênero romance, em sua origem, difere da tragédia por nesta ocorrer, comumente, o encaminhamento ao infortúnio; este se dá por um revés da Týkhe, devido a erro cometido pelos heróis, por falha de percepção – se errar é humano, no caso do herói virtuoso o erro pode ter a magnitude da inversão fatal da felicidade. Assim, o final feliz de Quéreas & Calírroe, como observa Duarte em seu posfácio, talvez aponte para o que faz de um romance um romance e não uma tragédia em prosa. 

Calírroe e Quéreas em pintura de 1903 do inglês John William Godward Foto: John William Godward

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Cáriton – um profissional da escrita que se anuncia no início da obra e diz ter por objeto uma paixão amorosa (páthos erotikòn) – constrói sua narrativa de modo reconhecidamente fundamental e universal: duas pessoas se unem, separam-se por força de acontecimentos ditados pela Fortuna e, ao final, voltam a se unir. No caso, o par surge por decisão de Afrodite, mãe de Eros, que promove o encontro de Calírroe – filha do admirado general siracusano Hermócrates, que derrotara os atenienses em episódio da Guerra do Peloponeso –, com Quéreas, cuja família é inimiga da sua. A beleza de Calírroe – “estátua adorada em toda Sicília” – é tal que faz com que a confundam com uma deusa: “sua beleza não era humana; mas antes divina , da própria Afrodite donzela”. Quéreas, por sua vez, “era um rapaz formoso, superior a todos”. Essa união, contudo, não seria apreciada por aqueles que disputavam Calírroe, mostrando-nos muito de questões humanas que transcendem a antiga circunstância; diz um pretendente aos demais: “ esse garoto de programa, pobretão, inferior a nós, reis, que competíamos, sem luta conquistou a coroa. Mas que o prêmio resulte inútil para ele.” 

Tudo se torna, de fato, infelicidade após as bodas, devido a um ardil criado por outro pretendente, que leva Quéreas a crer na traição da esposa; “dominado pela raiva, desferiu-lhe um chute ” que a deixou sem respiração. Dada por morta, ela é sepultada; embora absolvido pelos juízes, “Quéreas não absolvia a si mesmo”. Mas Calírroe é encontrada viva por ladrões de sepultura em busca do ouro e da prata deixados com ela. Resgatada, é vendida como escrava... No processo de negociação, uma máxima que surge no texto ilustra o poder enunciativo das palavras no romance: “Teron [o líder dos bandidos] elogiava-a mais por seu caráter do que pela beleza, pois sabia que o que é invisível necessita de defesa, enquanto o que está ao alcance do olhar por si só se sustenta”. 

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Indagada sobre seu passado por Dionísio, a quem fora vendida, Calírroe conta-lhe suas desventuras e pede para ser devolvida ao pai. Seduzido, o viúvo Dionísio lamenta por não a ter, desejando-a ardentemente: “Eros me odeia. Enterrei minha esposa, e a mulher recém comprada me escapa! Já imaginava para mim uma vida mais feliz que a de Menelau, pois penso que nem mesmo Helena era assim tão bela! Minha vida acabou! Calírroe se afasta daqui, e no mesmo dia deixo a vida”. 

A menção a Helena, mulher de Menelau – irmão do comandante das tropas gregas na Guerra de Troia, Agamêmnon –, levada pelo troiano Páris, é uma das muitas referências e citações da tradição literária grega até a época de Cáriton, incorporadas em seu texto: a Odisseia e a Ilíada de Homero são presenças constantes, e comparecem, entre outros, Xenofonte, Menandro e Demóstenes (de quem se colhe este eterno lema: “cada um imagina aquilo que quer, afinal”).

A identificação das referências e citações, feita pela tradutora ao longo do texto, permite-nos visualizar uma trama de elementos textuais da tradição e, portanto, desvenda-nos um processo de composição literária; e nos faz pensar nas relações entre esse universo distante e os atuais procedimentos de intertextualidade, entre os quais figura a apropriação de citações. É instigante pensar na manifestação, em que pese a enorme distância contextual, de um processo que pode ser visto como comum a toda a literatura, reconhecível no presente e nas tendências contemporâneas de composição.

Mas voltemos ao romance: após muitas peripécias, espera-se que, ao final, “o herói sobreviva aos males que o atingem para reconquistar a felicidade”. Esse emaranhado de ações transcorre de maneira fluida na tradução que almeja, segundo Adriane, “atingir um público amplo” e, coerentemente, buscou “um texto fluente e claro, características presentes no original” que, ademais, privilegia “a correspondência semântica” e “o rigor em relação aos conceitos e termos característicos do mundo antigo”. Mas também promete – e demonstra – estar atenta a “características da prosa de Cáriton”, entre elas “a elegância com que elege o vocabulário” e as já mencionadas citações e referências a autores e obras anteriores à sua. Feita para ser lida e apreciada como uma história de amor, a tradução e os comentários permitirão ainda, a um público mais restrito de estudiosos, reflexões férteis sobre os procedimentos adotados; para tanto, a ausência do original pode ser suprida por uma busca na internet, na qual o texto grego poderá ser encontrado. Depois de todos os sofrimentos, Calírroe agradece, por fim, a Afrodite: “Não a censuro, senhora, pelo que passei; era o meu destino. Rogo: não mais me separe de Quéreas; tanto uma vida feliz quanto uma morte em comum nos conceda”. Concede-se a nós, leitores/as, após os tantos possíveis incidentes do dia a dia, e tantos desencontros pela vida, uma experiência de fruição que pode nos deixar felizes. 

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QUÉREAS E CALÍRROE Autor: Cáriton de Afrodísias Tradução: Adriane da Silva Duarte Editora: 34 208 páginas R$ 57

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