Análise: Lou Reed buscou magia em um mundo sem transcendência

Discografia do músico teceu um longo e coerente romance

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Por Martim Vasques da Cunha
Lou Reed em detalhe da capa do disco 'Transformer', de 1972 Foto: Universal Music

No início deste ano, no dia em que Lewis Allan Reed faria 75 anos de idade (2 de março), sua esposa, a cantora Laurie Anderson, divulgou a compra do arquivo pessoal dele pela Biblioteca Pública de Nova York. Encontram-se ali milhares de metros de correspondências, fotografias e contratos; 600 horas de concertos e de fitas de estúdio, com canções que jamais foram lançadas; 1300 horas de vídeo; e uma enorme memorabilia, junto com sua coleção de LPs.

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Isto seria nada demais se não fosse o fato de que o sujeito citado era conhecido como Lou Reed – o bardo do rock ‘n’ roll sombrio, com seus personagens que viviam à margem, fascinados por aquilo que Edgar Allan Poe (um de seus ídolos) chamava de “o demônio da perversidade”. Assim, como alguém atraído pela autodestruição poderia ser um arquivista tão meticuloso do seu trabalho? Como um artista que escolheu deliberadamente a demolição da sua identidade teve uma paciência infinita para recuperar em detalhes o seu passado?

Este paradoxo explicita a busca de Lou Reed pela perfeição da sua obra. Nascido em 1942, ele sempre teve a marca da desgraça o guiando em seus passos. Quando jovem, seus pais o internaram em um sanatório, com direito a um tratamento de eletrochoques, porque suspeitavam de suas “tendências homossexuais”. Era tímido e, ao mesmo tempo, dado a explosões de fúria. Era obcecado por controle, capaz de expor a vida pessoal da sua irmã por causa de um único verso em uma canção; e também era capaz de ajudar os amigos quando mais precisavam dele – além de ser exigente com sua banda de apoio porque ela “não conseguia captar o som que existia em sua cabeça”.

Reed era, enfim, uma prima donna do rock. Contudo, reduzi-lo a isto seria um engano. Sua discografia comprova a generosidade secreta das suas verdadeiras intenções. Apesar dos chavões impostos pelo público em seus álbuns mais famosos – que incluem a fase Velvet Underground (“a maior banda de rock de todos os tempos, e ponto final”, como o próprio dizia), o hit parade Transformer (1972, produzido por David Bowie), o sombrio e ambicioso Berlin (1974), o robusto The Blue Mask (1981) e a sequência de obras-primas da maturidade, composta por New York (1989), Songs for Drella (1990, feito em parceria com John Cale, companheiro conturbado dos tempos do Velvet), Magic and Loss (1992), Set the Twilight Reeling (1996) e Ecstasy (2000) –, Reed perseguiu um único tema: recuperar a magia em um mundo que não se importava mais com a transcendência.

Estas são suas palavras, retiradas do prefácio de Pass Thru Fire (2010), uma reunião de letras completas. Todos os seus discos são capítulos de um único e longo romance, cujo personagem (talvez o próprio Lou?) se transforma por meio de diversas “máscaras” – o michê, o viciado em heroína, a prostituta, o travesti, o adorador de práticas sadomasô e o bandido zé-ruela. O que os liga não é a degradação, como pensa Victor Brockis em Transformer (Editora Aleph), biografia sobre Reed lançada recentemente no Brasil. Muito pelo contrário: trata-se do fato de que a tal da autodestruição é, na verdade, uma das inúmeras formas que elas conseguiram encontrar para saírem do mundo brutal onde viviam.

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Esta é a grandeza moral da obra de Lou Reed – explicitada em três álbuns que lançou antes da sua morte: o soturno The Raven (2003), uma releitura pessoal da obra de Edgar Allan Poe, na qual Lou une a sua sensibilidade aos escritos de um dos maiores autores americanos; Berlin: Live at St. Ann´s Warehouse (2008), uma releitura ao vivo do disco de 1974, que demonstra uma perturbadora serenidade diante dos temas escolhidos (divórcio e suicídio); e a derradeira magnum opus, feita em conjunto com a banda de heavy metal Metallica, a épica Lulu (2011), inspirada na femme fatale criada pelo escritor alemão Franz Wedekind.

Nesta trilogia de “estilo tardio” (segundo Edward Said), preocupada com as “primeiras e últimas coisas” – no caso, a indesejada das gentes e a chance de uma redenção –, Lou Reed realizou o que sempre desejou desde o início da carreira: elevar o rock ‘n’ roll ao patamar da literatura. Ele não foge do lado trágico e escuro da condição humana, mas jamais deixa escapar um rastilho de luz.

Reconhece que somos escravos do “demônio da perversidade”, como também espera que um “anjo da guarda” o proteja quando o fim chegar. Em Lulu, o compositor não recua diante do inferno de sua própria vida, para depois, em “Junior Dad” – a última faixa de um disco que inquietou até mesmo os fãs mais ardorosos –, desejar que um pai impotente resgate-o do naufrágio criado por sua vontade. Dois anos depois, um câncer no fígado o mataria no dia 27 de outubro de 2013 e o seu arquivo particular, divulgado em março de 2017, prova que, se ele não levou a sua vida sério, pelo menos fez o possível para registrá-la como arte. Eis o testamento definitivo de um artista que usou a autodestruição como poucos para purificar os versos que, desde então, permanecem nas entranhas dos vivos.

*Martim Vasques da Cunha é autor dos livros 'Crise e Utopia - O Dilema de Thomas More' (Vide Editorial, 2012) e 'A Poeira da Glória - Uma (Inesperada) História da Literatura Brasileira' (Record, 2015); Pós-doutorando pela FGV-EAESP

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