Análise: Roubo de tela de Tarsila amplia tragédia familiar

A operação da polícia que resgatou hoje, 10, a obra Sol Poente, é outro exemplo de descaso desde o incêndio da tela mais famosa de Di Cavalcanti

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Foto do author Antonio Gonçalves Filho

A tragédia acompanha a vida da família do marchand e colecionador de arte romeno Jean Boghici, morto em 2015. Três anos antes de sua morte, seu apartamento em Copacabana pegou fogo e uma das obras icônicas de seu acervo – e da história do modernismo–, a tela Samba, a mais importante do pintor Di Cavalcanti,foi destruída no incêndio de 2012.

Agora, a viúva, Geneviève Boghici, de 82 anos, é extorquida pela própria filha, a ex-modelo Sabine Boghici,e uma quadrilha carioca comandada por uma vidente, queroubou da idosa cerca de R$ 725 milhões entre obras de artes, joias e dinheiro. Eles levaram 16 telas da coleção familiar, entre elas duas obras históricas da modernista Tarsila do Amaral, O Sono e Sol Poente, esta recuperada hoje pela polícia e encontrada sob a cama de um dos criminosos.

A pintura Sol Poente, de 1929, foi recuperada em uma operação da polícia no Rio de Janeiro Foto: Itaú Cultural

As duas pertencem à fase mais cobiçada de Tarsila, a antropofágica, que está representada no Museu de Arte Moderna de Nova York pela tela A Lua, de 1928, mesmo ano de O Sono,comprada em 2019 por US$ 20 milhões (R$ 100 milhões). Avaliada em R$ 300 milhões,  O Sono tem importância fundamental na carreira de Tarsila. Influenciada pela eclosão do surrealismo europeu (em 1924) e as ideias de Freud, a pintora explora na pintura os limites entre o consciente e o inconsciente, traduzindo esse limiar entre razão e sua perda, ao adormecer, por formas ameboides que se multiplicam na pintura.

Pintado por Tarsila, O Sono, de 1928, também está entre os itens roubados Foto: Itaú Cultural

Já a tela encontrada sob a cama, Sol Poente, de 1929, avaliada em R$ 250 milhões, igualmente importante, representa mesmo uma ruptura de Tarsila com os esquemas racionalistas do cubismo europeu, que reproduzia na época da Semana de Artes Moderna de 1922. Na pintura, ela descobre a liberdade cromática e transforma a paisagem num campo de batalha entre razão e impulso erótico, ao retratar a natureza com elementos que fazem referência a órgãos sexuais– os pitilos e cactos remetem a falos – mas após o ato, já inofensivos. Tanto que Sol Poente é uma metáfora do momento em que o sol já se prepara para dar lugar à noite, misteriosa e densa.

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O quadro Samba, de Di Cavalcanti, pegou fogo e foi destruído Foto: Wikimedia Commons

Muitas obras da coleção Boghici têm esse caráter erótico. Samba (1925), de Di Cavalcanti, tela pintada três anos depois da Semana de Arte de 1922, retrata uma cena de seis sambistas no morro com duas mulheres à frente exibindo os fartos seios. Também Mascarada (1940), do mesmo pintor, também levada pela quadrilha, conserva características que coincidem com essa erotização da mulata por Di Cavalcanti, vista na tela embrulhada num lençol e festejando o carnaval. A tela está avaliada em R$ 1,5 milhão,pouco menos que uma pintura de Guignard (Menino, de 1935), cotada por R$ 2 milhões.

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