Anatomia da estupidez

Livro destrincha mitos mais duradouros que explicam a perseverança do ódio aos judeus

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Estereótipo. Na contracapa, ilustração de Belmonte, de 1935 Foto: REPRODUÇÃO

Mitos são simplificações destinadas a dar, por meio da lógica, conforto moral àqueles que se sentem miseravelmente perdidos em meio ao caos da História. Não são verdades nem pretendem sê-lo; servem somente para conferir sentido à vida do homem-massa, essa criação contemporânea que ocupa a sociologia e serve aos propósitos do poder totalitário. E não se prestam necessariamente à narrativa religiosa - seu uso tem sido basicamente político desde o século 19. Ao longo de todo esse tempo, observa-se que os mitos mais resistentes, renovados com notável energia, têm sido aqueles relacionados aos judeus. Tamanha é a força da narrativa fantasiosa a respeito desse povo ao longo dos séculos que é possível identificar até mesmo a consolidação de uma mitologia sobre os mitos - isto é, também as explicações para a perseverança do ódio aos judeus estão, boa parte delas, contaminadas por mistificações. Assim, é bem-vinda toda tentativa de compreender o antissemitismo à luz não do senso comum, mas da ciência histórica - como faz o mais recente livro da historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, Dez Mitos sobre os Judeus, que procura identificar as razões da permanência desse misto de hostilidade aberta e admiração latente que resulta na singularização dos judeus.

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Mitos não são criações aleatórias. Para que adquiram perenidade, característica primária da mitologia, tais narrativas devem ser vistas, sem reservas ou contestações, como a exata tradução do real. Mais do que isso: o mito, para sê-lo em toda a sua extensão e força, deve até mesmo substituir o real, isto é, deve ser a referência natural, mecânica, para que se faça a leitura dos conflitos e paixões da sociedade. Como mostra o livro de Tucci Carneiro, o que importa é a verossimilhança da narrativa, ainda que esta tenha escassa correspondência com a realidade. No caso dos mitos antissemitas que serviram aos nazistas, por exemplo, trata-se, no dizer de Hannah Arendt, de uma “ofensa ao bom senso”, pois os judeus passaram a ser perseguidos implacavelmente na Europa do século 20 justamente no momento em que seu alegado poder - aquele que serviu de pretexto para as perseguições - declinava junto com o Estado-Nação e quando os valores religiosos do judaísmo, cuja leitura deturpada alimentava a imaginação dos antissemitas, estavam perdendo força em meio ao acelerado processo de assimilação.

Essa incoerência é apenas aparente. O “Judeu”, entendido aqui como a imagem estereotipada dos judeus, era o inimigo ideal, pois, enquanto representava todo o Mal sobre a Terra, na realidade não tinha como se defender, nem pela força nem com argumentos racionais. Eis a potência do mito que encantou gerações até hoje.

Não é possível estabelecer uma cronologia da construção do mito do “Judeu”, mas não se pode negar que o elemento fundador desse empreendimento fabuloso seja a acusação de que os judeus mataram Jesus Cristo, provável razão pela qual Tucci Carneiro a tenha escolhido para abrir seu livro. A gravíssima condenação serviu para dar força ao cristianismo em seus primeiros tempos e ainda ofereceu ao mundo a imagem mais bem acabada do traidor - Judas. Queimar esse Judas, como se faz simbolicamente ainda hoje, como brincadeira de criança, serve para expurgar o Mal, que ameaça a ordem celestial.

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O deicídio está na base do antissemitismo, mas desde o século 19 foi largamente superado como seu elemento central. Este agora reside na certeza de que os judeus, reunidos em entidades secretas, fazem parte de uma conspiração internacional. Tucci Carneiro observa que essa ideia ganhou sua melhor interpretação por meio dos Protocolos dos Sábios de Sião, que reproduzem as atas de uma fictícia assembleia de judeus dispostos a enganar e dominar o mundo. A historiadora também nota que de nada adiantou alguns importantes jornais europeus contemporâneos dos Protocolos (1905) informarem que se tratava de um embuste, pois o texto dava “sentido” às convulsões revolucionárias do mundo, atribuindo-as ao plano de dominação judaica. Mesmo Hitler, no seu livro Minha Luta, deixa claro que, para ele, não importava se os Protocolos eram autênticos ou não; o que interessava, em suas palavras, era que a “realidade” tornavam “patentes” as maquinações dos judeus relatadas no livro.

Como demonstra Tucci Carneiro, os Protocolos, portanto, não são a fonte, mas sim resultado do sucesso do antissemitismo político, fenômeno que se espraiou pelo mundo - razão pela qual o texto foi traduzido para dezenas de idiomas e até hoje é publicado em diversos países, onde sempre há expressiva ralé em busca de argumentos lógicos para justificar seus fracassos e para seguir líderes com vocação autoritária. 

Tucci Carneiro se ocupa ainda de explicar diversos outros mitos, como aquele que há tempos atribui aos judeus o domínio da mídia global e das grandes finanças internacionais, e também o mais recente deles, que diz que a política externa americana se dobra aos caprichos dos judeus - como se as relações dos judeus com os Estados Unidos não estivessem baseadas numa identidade comum construída desde o século 17. Ao procurar refazer a trajetória histórica dessas imputações, com seus efeitos inclusive no Brasil, a pesquisadora disseca a lógica desse monumento à estupidez que é o antissemitismo e presta um bom serviço à razão.

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Marcos Guterman é doutor em História pela USP e editorialista do Estado

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