Se governos também são definidos por marcos temporais que vão além das datas que representam o início e o término do mandato, o de Dilma Rousseff pode ser dividido em dois: antes e depois das manifestações de junho de 2013. Nesta primeira fase, ela mantém elevados os índices de popularidade e dá as cartas na economia. No entanto, após o levante, que completa cinco anos neste mês, a gestão se torna errática, em ‘zigue-zague’, e termina com sua destituição da Presidência da República. O impeachment de 2016 representa uma derrota para o lulismo, que se despedaça.
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Este é o retrato narrado no livro O Lulismo em Crise – Um Quebra-Cabeça do Período Dilma (2011-2016), do professor da USP e cientista político André Singer, que foi porta-voz da Presidência no primeiro mandato do governo Lula. Ao reconstruir o período Dilma, Singer mescla análises sociológicas e políticas com pesquisas – e mostra como (e por que) se deu a inflexão que interrompeu o ciclo do PT no poder após o partido vencer quatro eleições presidenciais consecutivas. As peças desse quebra-cabeça são montadas ao longo da obra. Fazem parte desse encaixe reflexões sobre formação do sistema político-partidário brasileiro, as manifestações de junho, crise econômica, corrupção dos partidos e a Lava Jato.
Para compreender o argumento apresentado por Singer e a queda de Dilma é preciso resgatar o conceito de lulismo, termo cunhado pelo próprio autor em artigos e livros já publicados, como em Os Sentidos do Lulismo (2012). Segundo esta leitura, a partir da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, surge um fenômeno de realinhamento eleitoral. O apoio dos pobres e da classe trabalhadora a Lula se dá por dois eixos: 1) manutenção da estabilidade e crescimento econômico; 2) amplo programa de redistribuição de renda. Singer classifica o lulismo como movimento contraditório e uma de suas características é o reformismo fraco.
Entre as hipóteses levantadas pelo autor para a derrocada de Dilma está a tentativa da ex-presidente de acelerar o lulismo a partir de dois ‘ensaios’. Um desenvolvimentista, outro republicano. O primeiro corresponde a uma nova política econômica a fim de buscar um crescimento sustentável por meio da industrialização do País. Singer enumera as medidas econômicas no primeiro mandato de Dilma: redução dos juros, desvalorização do real e desonerações, entre outras. Em suma, um Estado mais intervencionista. Os industriais, no entanto, se voltam contra o governo que, em tese, procurou favorecê-los, o que representaria um paradoxo, sugere Singer.
As manifestações de junho funcionam, nas palavras do autor, como o apito na panela de pressão do lulismo. A crise econômica se avizinha, o desemprego e a inflação sobem, assim como os juros, interrompendo um dos eixos da nova matriz econômica. Os protestos pelo País são formados por jovens de perfis, rendas e ideologias distintas. “As ruas viraram um arco-íris, em que ficaram justapostos desde a extrema-esquerda até a extrema-direita”, escreveu o cientista político. Para Singer, junho “antecipava o debate da eleição de 2014” e seria o “prólogo do impeachment”.
A reeleição de Dilma já se dá em um cenário adverso, como lembra Singer, reforçando ainda mais a polarização. A presidente arrisca, então, uma guinada ortodoxa na economia, promove um ajuste fiscal e se “divorcia” do seu eleitorado.
No quebra-cabeça montado por Singer, outra peça para o impeachment está no Congresso e na relação o PMDB (agora MDB). É o segundo ‘ensaio’, o republicano, quando Dilma, logo no primeiro mandato, tira do partido ministérios e muda postos-chave em estatais. As rusgas da presidente com o principal partido de sustentação da base, incorporado ao governo após o mensalão, em 2005, não cessam, e o epicentro da crise se dá na eleição do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) como presidente da Câmara.
O livro foi impresso poucos dias depois da prisão de Lula, condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro pela Lava Jato. A operação rende um capítulo no qual Singer joga um olhar crítico – às investigações e ao PT. Singer afirma que a Lava Jato destampa um esquema de corrupção que financia, há décadas, o sistema político brasileiro como um todo, mas “catalisa a mobilização antilulista”. Para ele, o “PT foi o que pagou o maior preço”, mas deixou, assim como o PSDB e o PMDB, de dar explicações suficientes à sociedade.
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