Annie Ernaux escreveu O Acontecimento como um acerto de contas pessoal. Feminista, a autora se tornou um voz poderosa da literatura contemporânea francesa, espalhou-se pelo mundo depois do sucesso de O Lugar, outro acerto de contas, desta vez com o universo familiar e toda a carga que o cerca. Questiona o papel da mulher na sociedade e se expõe ao partilhar suas experiências mais íntimas.
Em suas narrativas, Ernauxexpõe sua veia confessional, ela traduz o peso do sofrimento num texto esculpido com uma espécie de lança ou canivete. São marcantes suas observações: “Há muitos anos estou às voltas com esse acontecimento da minha vida. Ler o relato de um aborto em um romance me arrebata, num sobressalto sem imagens nem pensamentos, como se as palavras se transformassem instantaneamente em sensação violenta.”, escreve.
O trauma do aborto acompanhou a escritora por toda vida. Depois do procedimento, por anos, ela teve miragens da “fazedora de anjos”, uma senhora roliça de pele acinzentada. É essa personagem um emblema curioso. Quase como um fantasma, por estar à margem da sociedade, aquela senhora é também o último recurso da protagonista, que está à mercê da própria sorte.
Sem médicos, colegas, orientação ou amigos, o mundo passa como uma vertigem pelos seus olhos. A importância do Acontecimento se revela no périplo da protagonista pelas ruas de Paris onde tudo fica turvo, mesmo quando volta à Universidade de Bordeaux, a cabeça maquina em busca de solução e projeta cenários catastróficos.
Ernaux coloca em xeque qualquer esperança na sociedade dominada por rígidos padrões morais, com o ventre legislado por anciãos de perucas vitruvianas. É curioso notar que, mesmo na França do Iluminismo, já no século 20, a discussão dos direitos femininos fosse um tabu. Ela não encontra nenhum livro ou referência para a guiar naquele momento (sobra para a ‘fazedora de anjos’). “Bem no momento em que eu estava descendo da maca, com meu grande suéter verde caindo sobre as coxas, o ginecologista me disse que com toda a certeza eu estava grávida. ‘Os filhos do amor são sempre os mais bonitos’. Era uma frase horrorosa.”
Com a mesma ponta de lança que é demarcada sua situação de desprezo, Ernaux fez da história um marco para tantas outras mulheres mundo afora, tornando-se a referência que tanto buscou na juventude.
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