Um dos grandes lançamentos de 2017, ainda que estranhamente pouco comentado, As Perguntas confirma o talento de Antônio Xerxenesky como um dos mais talentosos escritores da atualidade. Retornando ao romance após o ótimo F, em que uma assassina de aluguel precisava matar o cineasta Orson Welles, Xerxenesky faz neste livro uma espécie de ensaio sobre existir nas sombras.
Escrito sob encomenda de Joca Reiners Terron como parte de uma possível coleção de livros de terror sob o selo principal da Companhia das Letras, As Perguntas tenta descobrir a história de Alina, editora de vídeos que desde pequena enxerga vultos e sombras. Historiadora com ênfase no estudo do ocultismo, a protagonista se acostumou ao cinismo cotidiano de conseguir explicar tudo através da ciência. Extremamente cética, Alina só começa a perceber o sinistro do dia a dia quando é procurada pela polícia. Subitamente, jovens de classe média estão surgindo desorientados pela capital paulista, seus corpos marcados por tatuagens.
Muito mais que um simples exercício de gênero e estilo, As Perguntas parte de um plot banal para decifrar a existência da juventude. À beira do abismo dos 30 anos, sua protagonista é insegura, descontente com seu trabalho e frequentadora assídua de festinhas insossas. Colaborar com a polícia é mais um refúgio do que oferta de perigo. E é nesse refúgio que o brilho de Xerxenesky se revela. Em um caminho de divagações filosóficas, a obsessão de Alina envolve o leitor não por sua voz, infelizmente camuflada numa terceira pessoa durante a primeira parte da narrativa, mas sim pelo potencial niilista em detrimento de algum vestígio de esperança.
Desde a capa, As Perguntas já diz se tratar justamente disso, os vestígios. Percorrendo uma cidade fria e cinza, as quase 200 páginas do romance se dividem em dia e noite para retratar vinte e quatro horas na vida desse Leopold Bloom às avessas. Apesar do flerte explícito e bem construído com James Joyce, o que se encontra aqui é o desejo de mapear não uma cidade e uma vida, mas toda uma geração. Lentamente deixando de lado o gênero terror e abraçando o avesso das ilusões que tanto pautaram Nietzsche e Camus, Antônio Xerxenesky acerta ao tomar para si as rédeas da situação e devolver a Alina todo o seu potencial narrativo com a primeira pessoa. Fazendo referências à cultura pop sem cair no conforto do óbvio, As Perguntas dá voz a uma mulher que poderia ser qualquer uma. Alina, ponto sozinho na Avenida Paulista enquanto um curta é rodado perto da Fiesp, se torna legião. Dito isso, é assombroso o talento de Xerxenesky para criar boas protagonistas femininas; mais ainda, é motivo de alegria para qualquer leitor pegar um livro que consiga destrinchar geração e invencionices de gênero.
A certa altura do livro, Xerxenesky escreve que a “angústia nunca é compartilhável”. Mesmo sendo As Perguntas seu livro mais pessoal – o próprio autor enxerga vultos desde pequeno –, traduzir essa angústia em páginas, logo, compartilhá-la, exige que se dedique um nível obsceno de disposição à megalomania. Poucos conseguem tamanha entrega. E não digo isso porque o livro sai do gênero – o próprio F, policialesco do início ao fim, já demonstrava o conforto de Antônio nas fórmulas prontas. O trunfo dessas perguntas que tanto incomodam Alina – e por fim o leitor – é justamente trazer para si reflexão sobre tempos sombrios.
Espécie de manual de sobrevivência no século 21 – para os desiludidos, claro –, As Perguntas não deve ser lido à luz de um livro de terror, tampouco de gênero algum. Se há uma certeza em meio às dúvidas é o fato de não pertencer a nada específico. Mesmo com a rica bibliografia ocultista, os sustos que suas páginas dão, o sangue, a polícia – tudo é motivo para que se desconfie das reais intenções de um Antônio Xerxenesky cada vez mais afiado. Ao fim desse dia, quando o sol já tiver nascido e uma casinha se iluminar de sombras, tudo que o bom leitor deve fazer é reorganizar o livro e pensar.
Eis que surge o verdadeiro terror.
*Mateus Baldi é escritor e roteirista. Fundador da plataforma literária 'Resenha de Bolso', foi editor de cultura da revista 'Poleiro'
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