NOVA YORK — Dez anos antes que a espaçonave Apollo 11 descesse na Lua em 1969, o costureiro ítalo-francês Pierre Cardin vencia a corrida da moda espacial criando uma estética futurista e unissex. Aos 97 anos, Cardin ainda desenha roupas para o futuro, imaginando que, em 2069, todos nós vamos caminhar na Lua ou em Marte e lá as pessoas se vestirão com os Cosmocorps desenhados por ele mais de meio século atrás.
O passado e o presente das criações de Cardin continuam adiante do seu tempo. Exibidas em Pierre Cardin: Future Fashion, retrospectiva que o Brooklyn Museum, em Nova York, exibe até 5 de janeiro, cerca de 170 peças, produzidas desde a década de 1950 até modelos que saíram do estúdio dele este ano, são exemplos de uma carreira sem paralelos na extensão, na produção e no sucesso financeiro. Único designer de moda admitido na Académie des Beaux-Arts de Paris, Cardin é o que se define como um homem renascentista pela capacidade de ser bom em muitas coisas.
A visão futurista e o faro apurado de empresário imprimiram seu nome em perfumes, joias, objetos de decoração, cosméticos, bonecas e uma enormidade de outros produtos. Pioneiro no licenciamento de marcas ainda no final dos anos 1960, ele domina um império que não se dispõe a vender por menos de um bilhão de euros.
Inovação. A construção desse império começou cinco anos depois de ele estar vivendo em Paris, em 1950, quando deixou o trabalho de principal costureiro de Christian Dior e fundou a própria casa de moda. Em 1954, ele apresentou a primeira coleção feminina de alta costura assinada com o nome Pierre Cardin.
A inovação já era um dos traços das suas estratégias. Numa decisão criticada no meio da alta-costura, ele arriscou carreira e reputação para ser o primeiro costureiro a lançar, em 1959, uma linha de prêt-à-porter feminina, desfilada na loja de departamentos Printemps, em Paris. Para ele, “moda não deve ser um privilégio e, se você vai copiar, melhor você mesmo fazer isso”. No ano seguinte, Cardin lançou sua primeira coleção masculina, também de prêt-à-porter, com os ternos Cilindro.“Eu queria tornar minhas criações acessíveis para um número maior de pessoas, trazendo a alta moda para a rua”, explicou o criador dos paletós sem lapela e calças justas que vestiriam os Beatles no início da carreira deles. Com a roupa urbana, ele democratizou a moda e ofereceu design de alta qualidade para um público diferente da clientela de haute-couture. A dele incluía Jacqueline Kennedy, uma das primeiras-damas americanas mais elegantes e, entre dezenas de celebridades, os atores franceses Brigitte Bardot, Jean Paul Belmondo e Jeanne Moreau, com quem ele manteve relacionamento amoroso por alguns anos.
A linguagem do vestuário foi reimaginada por ele na década de 1960 com novas silhuetas e novos materiais. O fascínio pela febre internacional da corrida espacial entre russos e americanos e pelas tecnologias que surgiam na época se materializou em centenas de modelos de roupas, chapéus e bolsas com formas geométricas nas quais o círculo é a figura mais constante.
Frequentemente Cardin inovou na confecção ao substituir tecidos e couro por coisas até então nunca usadas no vestuário. As peças de Cosmocorps, de meados dos anos 1960, são de vinil e tramas metálicas, têm zíperes grandes, com golas enroladas ou sem gola, e os chapéus são parecidos com capacetes de astronautas. O estilo se espalhou pelo mundo e marcou época. Na série de TV Star Trek, de 1966, os uniformes unissex da tripulação desenhados por William Ware Theiss são semelhantes aos Cosmocorps de Cardin.
Mestre em desenho e alfaiataria, além de experimentar tudo o que pudesse na composição de suas criações, em 1968 ele moldou uma série de vestidos em 3D feitos de Cardine, tecido desenvolvido especialmente para ele a partir da fibra sintética dynel. Na década de 1970, ele buscou inspiração no passado para reviver paletós de ombros acolchoados dos anos 1940, mas os expandiu até fazê-los parecer armaduras de futebol americano. Seus desenhos mais notáveis naquele período foram inspirados pela China, que ele visitou pela primeira vez em 1978. O país se reflete tanto no casaco Pagoda como no gaveteiro Cabeça de Lua, móvel mais largo na parte superior.
Luzes piscantes. As criações dele para moda urbana ficaram mais realistas depois de sua visita à Nasa, em 1971, durante a qual ele foi o primeiro civil a vestir o macacão pressurizado usado dois anos antes por Buzz Aldrin, o piloto da Apollo 11. Mas sua fantasia futurista se soltou em vestuários para a noite. Na entrevista ao curador Matthew Yokobosky publicada no catálogo da retrospectiva, ele conta que “preferia imaginar um vestido de noite para um mundo que não existe ainda” e, encantado pelo céu noturno, desde criança vislumbrava “vestidos feitos de cristais e luzes piscantes”.
Essa imagem é evocada na última galeria da exposição, um grande salão totalmente negro que reúne peças de várias décadas, inclusive um vestido “Pendulum” de seda vermelha, que Cardin criou este ano. A constelação de roupas e acessórios resplandece em plataformas altas como se flutuasse em algum ponto do espaço sideral. Os trabalhos refletem luz e causam efeitos cinéticos graças ao uso de tecidos brilhantes, cores contrastantes, strass, lantejoulas e formas que evocam estrelas e galáxias.
Pierre Cardin: Future Fashion se completa com fotografias de arquivo e vídeos de desfiles do estilista, trechos de programas de televisão, documentários e longas-metragens para situar o trabalho dele em um contexto histórico mais amplo. Na última sala, um monitor exibe o desenho animado Miss Sistema Solar, episódio de 1963 da série Os Jetsons, família que vive no espaço e séculos à frente da época em que o programa foi ao ar. O enredo faz referência à moda com que Cardin antevia o futuro no qual pessoas como aquelas viveriam. Nele, Jane Jetson compra um Pierre Martian Original, vestido longo com luzes piscante ligadas a uma extensão elétrica. À época do desenho, a tecnologia de iluminação por LED (diodos emissores de luz, na sigla em inglês) era extremamente cara. Hoje, o preço acessível permite que Cardin aplique LED piscante em roupas e acessórios, trazendo o futuro dos Jetsons para o presente.
70 anos de criatividade de um gênio que popularizou a moda
O sucesso financeiro de Pierre Cardin permitiu que ele entrasse em diversos outros ramos empresariais
Italiano nascido na região de Veneza em julho de 1922, com o nome Pietro Costante Cardini no registro, Pierre Cardin é filho de vinicultores que se mudaram para Saint-Étienne, no centro da França, quando ele tinha dois anos de idade. Na adolescência, dividia seu tempo entre a escola e as funções de ajudante de um alfaiate.
Aos 18 anos, com o propósito de se tornar costureiro, Cardin foi trabalhar numa oficina de costuras em Vichy e aprendeu a remendar fundilhos de calças, traçar, cortar e costurar. A prática foi interrompida pela Segunda Guerra, durante a qual ele se integrou ao serviço da Cruz Vermelha e estudou contabilidade.
Quando a cidade foi liberada da ocupação nazista, ele mudou para Paris e empregou-se como alfaiate na Maison Paquin. Passou a fazer parte do círculo de artistas de Jean Cocteau, contribuindo na confecção de figurinos e adereços do filme A Bela e a Fera dirigido pelo surrealista. Trabalhou por um período com Elsa Schiaparelli e, em seguida, foi o primeiro contratado por Christian Dior, com quem ficou por quatro anos como principal costureiro.
Em 1950, Cardin adquiriu a Maison Pascaud, especializada em figurinos para teatro; manteve essa atividade por quatro anos, transformou-a em ateliê de alta costura e deu início à empresa que ele multiplicou em várias outras áreas e dirige há 70 anos.
A partir dos anos 1960, Cardin começou a expandir sua prática para objetos de desenho industrial como relógios, rádios e luminárias, desenhando também móveis de alto padrão, interior de carros e aviões. Depois de inovar e popularizar a moda com seu estilo futurista, ele foi o primeiro costureiro a licenciar seu nome para outros produtos. Ao longo dos anos, seu logotipo chegou perto de 850 licenças. O sucesso financeiro lhe deu condições de entrar em outros ramos empresariais, como fez em 1981 ao comprar seu restaurante parisiense preferido, o Maxim’s, que hoje tem filiais e franquias espalhadas pelo mundo.
A fortuna que acumulou graças a sua criatividade, suas tesouras, agulhas e a habilidade para negócios lhe permitiu investir em empreendimentos menos ou pouco lucrativos. Como a arte. Em 1970, a Prefeitura de Paris lhe deu a concessão do antigo Théâtre des Ambassadeurs que, reformado e transformado no Espace Cardin, abriga teatro, cinema, galeria e estúdio de desenho. Todos os verões, ele promove um festival de música e teatro num castelo que possui em Lacoste, na região francesa da Provence, onde quatro séculos atrás morou o Marquês de Sade.
Diferentes das linhas simples de seus desenhos, algumas das outras investidas e promoções de Cardin tendem à extravagância. Uma delas é o Palais Bulle, que deve esse nome à sua arquitetura de módulos esféricos como bolhas construídos entre terraços e piscinas. Com vista para a Baía de Cannes, a residência de verão possui, entre outros elementos grandiosos, um anfiteatro ao ar livre com capacidade para 500 espectadores. Esporadicamente, o próprio Cardin apresenta desfiles ali.
Alguns dos desfiles realizados por ele durante a carreira foram marcados pelos cenários, número de modelos e espectadores. Em 1960, ele chamou 250 estudantes universitários para apresentarem os trajes da sua primeira coleção masculina; a primeira coleção infantil, em 1966, foi toda exibida por trigêmeos. Na década de 1970, houve desfiles narrados e, por isso, a apresentação durava até uma hora e meia. Em 1991, 200 mil pessoas foram ver suas criações em plena Praça Vermelha, em Moscou. Na China, as exibições tiveram o Deserto de Gobi como palco em 2008, um porta-aviões ancorado em Tianjin, em 2011, a Floresta de Pedra do Rio Amarelo, em 2016, e a Grande Muralha, em 2018, onde ele mostrou mais de 300 modelos.
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