Com a abertura da exposição John Graz: Idílio Tropical e Moderno, neste sábado (31), na Estação Pinacoteca, o pintor suíço que participou da Semana de Arte Moderna de 22 está representado em duas grandes mostras simultâneas na cidade. A outra, Desafios da Modernidade – Família Gomide-Graz nas Décadas de 1920 e 1930, inaugurada em maio no Museu de Arte Moderna (MAM), fica aberta até 15 de agosto. As duas exposições se complementam. A da Estação Pinacoteca está focada na produção de óleos, desenhos e aquarelas de Graz que têm como temas a vida dos índios, a natureza e tipos populares do Brasil. No MAM, o lado designer de Graz, que assinou projetos de decoração para mansões paulistanas, ganha maior destaque, apesar de trazer também obras do artista como pintor.
No caso de Graz, formado na Europa, artes aplicadas e pintura não eram conflitantes. Introdutor do estilo art déco no Brasil, ele pensou a pintura não como entidade autônoma, mas dependente do ambiente, “Pode-se dizer que suas criações são solidárias, na medida em que pinturas, desenhos, tecidos, mobiliário e luminárias foram projetados para compor determinados ambientes, para funcionar em conjunto. É arte integrada ao espaço habitado”, analisou a curadora da mostra do MAM, Maria Alice Milliet na abertura da mostra.
Tanto na exposição do MAM como na mostra aberta hoje na Estação Pinacoteca, a natureza retratada por John Graz é a da Arcádia e da mitologia europeia. No, MAM há numa grande pintura (A Pastoral) em que Pã com sua flauta posa num cenário arcádico ao lado de corças. Na Estação Pinacoteca, há vários exemplos de cenas idílicas de índios convivendo num paraíso pré-moral. Outra figura mítica recorrente em seu trabalho é a do caçador, esculpido num relevo de gesso, obra do Palácio Bandeirantes que esteve no MAM e agora pode ser vista na Estação Pinacoteca.
O MAM traz ainda duas das oito pinturas do artista presentes na histórica exposição da Semana de 22: Paisagem de Espanha (Puente de Ronda, 1920) e Ciprestes em Toledo (1916), telas em tons baixos que contrastam com a policromática pintura de Tarsila da mesma época.
Ao chegar ao Brasil, em 1920, para casar com Regina Gomide, que viria a se tornar sua parceira também profissional na arquitetura de interiores, John Graz logo descobre que a elite paulistana da época tinha uma atitude hostil em relação à pintura moderna. Concluiu que seria impossível sobreviver das telas que produzia, o que o fez decidir pelo design de móveis, vitrais e grandes afrescos decorativos (hoje desaparecidos, restando as imagens de alguns deles em fotografias na exposição da Estação Pinacoteca). Um segmento da mostra é dedicado a essa atividade, exibindo desenhos de projetos.
Estação Pina. Aberta neste sábado (31), com curadoria de Fernanda Pitta e assistência de Thierry Freitas, a mostra da Estação Pinacoteca reúne 155 peças do pintor e designer, entre elas pinturas, desenhos, aquarelas, fotografias, projetos de decoração e móveis. Dessas, 42 foram doadas à Pinacoteca pelo Instituto John Graz.
São poucos os móveis na exposição (duas poltronas e uma cadeira), até mesmo porque a exposição do MAM já mostra muitos exemplos da atividade de Graz como designer e decorador de residências luxuosas paulistanas. Em contrapartida, a mostra da Estação Pinacoteca se concentra na produção do pintor dedicada ao registro da cultura indígena e popular – daí o título que aglutina o “idílio tropical”, uma visão idealizada do cotidiano dos nativos, com sua moderna transfiguração geométrica.
Graz trouxe para o Brasil a herança suíça do cruzamento híbrido entre artes industriais, design e belas artes que, na Alemanha, resultou numa escola como a Bauhaus. A diferença é que Graz se fixou no déco e não caminhou para a abstração. Seus projetos de interiores deveriam encontrar nas pinturas uma correspondência estética que harmonizasse com o conjunto. Em outras palavras: a sua não era uma pintura autônoma, mas pensada para interagir com o ambiente de forma a criar um espaço homogêneo.
No MAM, é possível ver nas duas telas que Graz pintou na Espanha – e que participaram da Semana de 22 com outras cinco suas – uma preocupação formal moderna, especialmente no uso de um cromatismo inventivo que reinventa os ciprestes de Toledo e a Ponte de Roda. Na Estação Pinacoteca, essa modernidade se transforma numa representação da natureza sem compromisso com o modelo real. Assim, índios são retratados segundo um esquema gráfico simplificador e a paisagem é recriada de forma idílica – a curadora Fernanda Pitta acrescenta a palavra “Arcádia”, filiando Graz a uma tradição romântica da simplicidade pastoril.
Do quarteto modernista de pintores – Anita Malfatti, Di Cavalcanti, John Graz e Rego Monteiro – apenas os dois últimos se interessaram pela tradição formal de matriz indígena. No entanto, talvez pela própria formação de Graz – cuja juventude foi marcada por movimentos da vanguarda europeia (em especial o Jugendstil, reativo ao neoclassicismo) –, não se tratava da apropriação da cultura indígena pura e simplesmente, mas da recriação de padrões segundo a visão aglutinadora do pintor, de juntar artes aplicadas à produção de telas e afrescos. Há na mostra esboços de painéis e composições dentro desse conceito de design total, feitos para combinar com móveis de madeira nobre e formas sintéticas. Graz só usava material de primeira qualidade. Suas telas eram pintadas com tintas holandesas.
Esse refinamento, claro, teve um preço. “Como ele se tornou conhecido como designer e decorador de mansões, sua atividade como pintor foi eclipsada”, defende o curador assistente da mostra, Thierry Freitas. “De fato, ele sempre pensava na pintura como parte integrante da arquitetura”, acrescenta a curadora Fernanda Pitta, que dividiu a exposição em quatro núcleos: indígena, natureza, cultura popular e abstração. De 1925 a 1960, Graz produziu quase exclusivamente para a decoração de casas de família como Alberto Ferrabino, Cunha Bueno, Leirner e Simonsen (a mostra tem fotos de alguns desses projetos). Traz também peças de todas as épocas, dos anos 1920 à fase derradeira, de 1969 em diante, em que retoma temas dos tempos do modernismo brasileiro.
Nos anos 1970, as estantes de seu ateliê eram forradas de objetos que trazia de viagens, de santas mineiras e objetos folclóricos do Sul e Nordeste a peças indígenas, todos usados como modelos em composições que estão na mostra da Estação Pinacoteca. Uma tela de 1977, em particular, remete ao universo picasssiamo da escultura africana, ao reproduzir uma máscara da cultura Fang com leve sotaque cubista. Fiel à leitura do pintor Paul Baudoüin (1844-1931), ele segue seu conselho e recorre aos terras e óxidos de ferro (as melhores cores, segundo o artista francês) para dar sua versão dos mitos arcaicos da África.
Em 1978, dois anos antes de sua morte, Graz deixou claro que não acreditava numa “arte brasileira”, mas universal, que abolisse fronteiras e gêneros. Assim, ele se sentia livre tanto para juntar um inca ao lado de um unicórnio e uma ave do paraíso numa pastoral maluca (O Caçador, relevo em gesso) como para pintar um índio sem etnia definida numa falsa floresta tropical. Invenção era seu negócio. No ano de sua morte, o crítico Casemiro Xavier de Mendonça (1947-1992) escreveu aqui no Estadão que Graz foi o homem que levou o futurismo para a sala de visitas. Pode parecer boutade, mas era a mais pura expressão da verdade. Sem ele e a Semana de Arte Moderna de 22, São Paulo teria sido apenas uma província. Rica, mas, ainda assim, uma província.
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