Quando o crítico Roberto Pontual escreveu, nos anos 1970, o primeiro livro sobre a coleção de Gilberto Chateaubriand, esse acervo tinha obras de 122 artistas. Dez anos depois, na publicação de Entre Dois Séculos - Arte Brasileira do Século 20, em 1987, o livro contabilizava 216. Ao morrer na tarde de hoje, quarta (14), em sua fazenda, aos 97 anos, Assis Chateaubriand deixa um legado de mais de 8 mil obras assinadas por 500 artistas. Nessas quatro décadas, a coleção passou por um reordenamento, mas sempre refletindo a vontade de Chateaubriand de contar uma história da arte brasileira do século 20 de modo consequente – e com a devoção de um colecionador particular que, hoje, ajuda a enriquecer o acervo de museus como o de Arte Moderna do RIo (MAM/RJ).
O diplomata mantinha em sua coleção obras raras, desde a produção dos artistas da Semana de 1922 – como Anita Malfatti e Tarsila do Amaral – até contemporâneos, passando pelos maiores nomes do modernismo (Lasar Segall,Guignard, Portinari) e do movimento neoconcreto (Lygia Pape, Lygia Clark e Hélio Oiticica). Chateaubriand viveu 97 anos, mas sua coleção abrange um período superior a um século, que começa com Malfatti e incorpora a cada década o que de mais expressivo a arte brasileira produziu – o colecionador foi um dos primeiros a comprar as obras dos pintores da chamada Geração 80, colocando esse acervo para circular desde então, cumprindo um papel antes só reservado a museus.
E essas expedições por museus brasileiros e estrangeiros levaram a uma multidão telas que as pessoas só conheciam por meio de reproduções em livros de arte, como O Farol de Monhegan, pintado em 1915 por Anita Malfatti nos EUA, sete anos antes da Semana de 22, ou O Vendedor de Frutas (1925), óleo de Tarsila que, ao lado de Urutu (1928), obra-prima da fase antropofágica, enriquecem a visão sobre o movimento modernista. Em matéria de autorretratos, a coleção de Chateaubriand é igualmente um compêndio sobre a evolução desse movimento para novas escolas – entre os melhores destacam-se o autorretrato de Ismael Nery, um óleo sobre madeira sem data, e o de Guignard, pintado em 1961. Finalmente, para entender as propostas da geração de Tarsila e Anita, as esculturas de Brecheret que Chateaubriand comprou estão entre as mais notáveis do modernismo.
Guignard tem um papel importante nessa coleção: entre suas principais telas está O Domador e o autorretrato a carvão de 1919, em que Guignard destaca seu lábio leporino. Outra prova de adesão de Chateaubriand ao modernismo brasileiro são as esculturas de Maria Martins que integram seu acervo, especialmente as que recriam as lendas do Amazonas e mantêm um diálogo estreito com a antropofagia de Tarsila.
Para um homem rico, filho de um mecenas que deu origem ao Museu de Arte de São Paulo, Assis Chateaubriand, não era de se esperar que seus olhos se voltassem para a produção de artistas com preocupações sociais. No entanto, sua coleção têm exemplares magníficos que vão das ilustrações de Ismael Nery para o livro Os Miseráveis, de Victor Hugo, a gravuras de Goeldi (como Convite à Greve, de 1957) e a ponta-seca Os Imigrantes, que Lasar Segall assinou em 1928, para não falar de sua série Mangue (1943). Portinari, claro, destaca-se nesse segmento com o óleo Os Espantalhos (1940) obra icônica reproduzida em todo livro de arte brasileira dedicado à história do modernismo.
Os abstratos marcam presença na coleção Chateaubriand, que tem no pioneiro Antonio Bandeira vários exemplos (de Futebol no Hyde Park, de 1964, a Catedral, óleo pintado no mesmo ano). Da geração pop dos anos 1960, esse acervo incorporou obras históricas de Antonio Dias (Um Pouco de Prata Para Você, de 1965), Claudio Tozzi (A Multidão, liquitez sobre tela de 1968) e Gerchman (A Gioconda do Subúrbio, 1966).
Entre os independentes, Chateaubriand dedicou especial atenção a artistas como a pintora Mira Schendel e o escultor Sérgio Camargo. E foi um dos primeiros colecionadores no Brasil a apostar no hoje consagrados Cildo Meireles e Waltercio Caldas. A lista de grandes nomes poderia se estender, mas os artistas citados já são suficientes para provar que a coleção de Gilberto, morto de "de causas naturais", segundo a família, na fazenda Rio Corrente, em Porto Ferreira, a 220 quilômetros da capital paulista, é uma das melhores entre as brasielrias.. A maior parte do acervo — 6.600 obras — foi cedida ao Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro, em regime de comodato, em 1993, o que atesta também sua visão social.
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