EXPOSIÇÃO SALVADOR DALI NA FAAP. Foto: Daniel Teixeira/Estadão
Foto: Daniel Teixeira/Estadão

‘Acima de tudo, Salvador Dalí nos ensina a olhar’, diz Montse Aguer, diretora dos museus Dalí

Especialista afirma que pintor soube questionar a visão da realidade

PUBLICIDADE

Foto do author Thaís Ferraz

Salvador Dalí foi uma das figuras centrais do Surrealismo. O pintor espanhol, um dos nomes mais conhecidos da história da arte, aderiu ao movimento em 1929, fazendo contribuições inestimáveis para o grupo, que tinha como objetivo quebrar a ordem estabelecida. Figura excêntrica, transformou-se em uma representação corpórea do movimento. Nesta quarta-feira, 1º, o público brasileiro poderá prestigiar, em novos suportes contemporâneos, 100 das suas obras mais importantes, na mostra Desafio Salvador Dalí: Uma Exposição Surreal na Faap

A exposição é licenciada pela Fundação Gala - Salvador Dalí. Montse Aguer, diretora dos museus Dalí e que conviveu com o pintor, afirma que Dalí foi capaz de questionar a visão da realidade. “Ele foi um artista que, com um profundo conhecimento do passado, projetou a sua visão para o futuro. Acima de tudo, através do seu trabalho, ele nos ensina a olhar”, diz.

Exposição imersiva 'Desafio Salvador Dali: Uma Exposição Surreal' mergulha na obra e na mente do pintor surrealista. Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Confira abaixo a entrevista completa.

O lançamento do manifesto surrealista completa 100 anos em 2024. Qual foi a importância do movimento para a história da arte - e quais foram os seus principais legados?

Foi um movimento crucial. Surgiu em tempos de incerteza e representou um certo tipo de abertura, havia esse objetivo de abrir janelas mentais. Queriam quebrar a ordem e as convenções estabelecidas, isto é, proclamar a revolução e a libertação do pensamento contra a ordem estabelecida. Foi um movimento artístico e literário, que pretendia influenciar todos os campos do conhecimento. Queria oferecer-se como forma de viver, até de ser, quase. Como André Breton afirmou em 1924 no seu Manifesto, o Surrealismo é um ‘puro automatismo psíquico pelo qual se tenta expressar, verbalmente ou de outra forma, o funcionamento real do pensamento na ausência de qualquer controle exercido pela razão fora de qualquer preocupação estética ou moral’. Poderíamos dizer que o Surrealismo está hoje integrado na cultura de massas, na cultura popular, no sentido de evocar o estranho e o misterioso, e fala-nos de uma experiência ou obra que apela à nossa imaginação. As obras surrealistas são conhecidas e justificadas em numerosos escritos e exposições em todo o mundo e continuam a exercer mistério e poder de atração.

Quando Dalí foi expulso do movimento surrealista, ele declarou “O surrealismo sou eu”. Quanta verdade havia naquela afirmação?

Hoje, se pedíssemos à maioria das pessoas que pensassem numa palavra relacionada com o Surrealismo, provavelmente o nome ‘Dalí’ seria a primeira resposta que lhes viria à mente. Então, o que antes parecia uma piada, agora se tornou realidade. Dalí, suas obras e seu personagem estão no imaginário do nosso século. Imagens como relógios macios, elefantes com patas de insetos ou girafas em chamas fazem parte do nosso imaginário hoje. Os visitantes também são atraídos pela sua relação com a cultura de massa e pela sua ideologia artística vital, sólida e coerente. O espectador contemporâneo é atraído por aquilo que é inescrutável, misterioso.

Montse Aguer, diretora dos museus Dalí. Foto: Leda Abuhab/Divulgação - Arquivo: 19/10/2014

Dalí era uma figura complexa, equilibrando genialidade, excentricidade e publicidade, sendo até criticado por isso (como indicava a famosa referência de André Breton aos “sapatos de couro envernizados” do pintor). Como eram estes aspectos vistos pelo mundo das artes plásticas e pelo público de então, e como são vistos agora?

Houve uma evolução na consideração de Dalí. Este equilíbrio entre trabalho e caráter nem sempre foi compreendido; agora podemos entender que seu personagem é apenas mais uma parte de sua trajetória artística, uma de suas criações. As suas paisagens, tão reais que parecem quase saídas da imaginação, a sua poderosa iconografia, os seus escritos, como a sua autobiografia A Vida Secreta de Salvador Dalí, os seus filmes com Luis Buñuel, as suas cenografias, o seu Teatro-Museu em Figueres… todos eles estão se tornando cada vez mais conhecidos e apreciados. De “Avida Dollars”, anagrama usado por Breton para descrevê-lo, Dalí tornou-se um dos artistas mais importantes dos séculos XX e XI.

A exposição abordará o talento de Dalí em diferentes áreas - artes visuais, cinema, publicidade, ilustração, ourivesaria. Além da pintura, quais destas áreas eram as suas preferidas? E que legados ele deixou para esses campos?

Este projeto visa apresentar Salvador Dalí como ele queria ser considerado, como humanista, um verdadeiro artista renascentista, e queria ter amplo conhecimento e se destacar em todos os campos. Tal como fizeram os artistas do Renascimento, ele quis ser o criador omnisciente, o humanista que trabalhou em diferentes campos da criação e do conhecimento, tendo sempre em mente o ofício da pintura. É um criador no sentido mais amplo do termo, ultrapassando o campo estrito da pintura. Dalí é considerado não apenas pintor, mas também desenhista, pensador, escritor, entusiasta da ciência, catalisador de tendências de vanguarda, ilustrador, designer, cineasta e cenógrafo, entre outros. E como artista do século XX, também atuou na área de acontecimentos e performances. Elaborou sua obra tanto a partir de linguagens artísticas complexas e diversas, quanto a partir da construção de seu próprio personagem. A Fundação que ele criou e que leva seu nome e o de Gala tem a missão de divulgar o legado de Dalí, e por isso estamos muito entusiasmados em trazer Dalí ao público brasileiro e convidá-lo a viver uma experiência global em torno do universo criativo do artista.

Publicidade

Obra do artista surrealista pode ser vista de forma inédita no Museu de Arte Brasileira da Faap. Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Nas obras de Dalí, vemos frequentes referências às rochas da costa catalã e à sua terra natal como um todo. De que forma o seu trabalho foi influenciado pela sua terra natal e pela sua própria vida? Existe um aspecto autobiográfico em sua arte?

O próprio Dalí afirma: ‘Eu me fiz naquelas margens, criei minha persona aqui, descobri meu amor, pintei minha obra, construí minha casa. Sou inseparável deste céu, deste mar, destas rochas: ligado para sempre a Portlligat -que na verdade significa porto ligado- onde defini todo o meu impulso bruto e as minhas raízes”. A sua simbiose com a paisagem é tal que chega mesmo a dizer que é o “Cabo Creus”, zona geográfica onde tem a sua única residência estável. A luz única, o vento tramontano, a geologia mineral e árida, indomável… são todos elementos que moldariam o seu caráter e principalmente as suas obras. A paisagem é um elemento chave na sua obra e se algum visitante a puder conhecer, abre-se toda uma nova dimensão de Dalí. A paisagem que retrata é real, quase hiperreal; Dalí fala de ‘fotografia pintada à mão’; e ao mesmo tempo é o cenário dos seus sonhos.

Como podemos compreender a viragem de Dalí para a fase atômica? Que fatores o levaram a isso e por que essa fase é às vezes relegada quando pensamos na obra do pintor?

Esta fase é cada vez mais estudada e, portanto, mais conhecida do público no que diz respeito ao contexto da carreira artística de Dalí. É uma etapa fundamental do seu trabalho, pois dialogam duas áreas de profunda importância para ele: a espiritualidade e a ciência. Dalí busca a fé, mas não consegue encontrá-la, e a ciência o ajuda em sua pesquisa sobre a imortalidade. O lançamento da bomba atômica, que o próprio Dalí descreveu como sísmica, foi um dos acontecimentos que o levou a iniciar a fase do ‘misticismo nuclear’, onde a física quântica e o misticismo desempenhariam um papel proeminente.

Onde reside a genialidade de Dalí?

É o artista que, com um profundo conhecimento do passado, projeta a sua visão para o futuro. É um artista que nos provoca e mexe e nos faz questionar a nossa visão da realidade. Acima de tudo, através do seu trabalho, ele nos ensina a olhar. A realidade não é o que vemos à primeira vista, tem múltiplas leituras que, para o próprio Dalí, apelam à magia. Como ele escreveu: ‘Acredito na magia, que é, em última análise, apenas o poder de materializar a imaginação em realidade. Nossa era supermecanizada subestima as propriedades da imaginação irracional que não tem nenhuma aparência de praticidade, mas que é, no entanto, a base de toda descoberta’.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.