Berlioz segundo Herreweghe

Maestro belga que se apresenta hoje e amanhã na Sala São Paulo defende a busca pelas intenções do compositor como único caminho possível do intérprete

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Foto do author João Luiz Sampaio

"Não me chamem de fundamentalista", brinca o maestro belga Phillipe Herreweghe. "Mas que a interpretação que busca a autenticidade da obra acabará como o único caminho viável para a música erudita, isso é fato." Herreweghe deve saber do que fala. É um dos pioneiros do chamado movimento da Música Historicamente Informada, que, desde os anos 60, prega que uma obra deve ser executada de acordo com as técnicas e intenções da época em que foi escrita. E hoje e amanhã rege um de seus conjuntos, a Orquestra dos Champs-Elysées na Sala São Paulo, abrindo a temporada da Sociedade de Cultura Artística. Uma rápida volta no tempo. Nos anos 60, um grupo de músicos resolveu que a música barroca precisava ser interpretada de acordo com as técnicas e instrumentos da época em que foi escrita. Termos como autenticidade e respeito ao autor voltaram com força à gramática da cena musical. A princípio, polêmicas: como afinal ter certeza sobre o modo como essas partituras eram tocadas séculos atrás? Décadas de pesquisa e prática depois, já ficou difícil ouvir a música barroca em outro contexto, de forma que as sinfônicas tradicionais começaram a se afastar deste repertório. Assunto resolvido? Não por muito tempo. E se a mesma ideia fosse aplicada aos autores do século 19? A sensação era de que se estava indo um pouco longe demais. Certo? Não segundo a cartilha de Herreweghe. Ele leva a ideia de especialização tão a sério que criou três conjuntos: com o Collegium Vocale e La Chapelle Royale, se dedica à música barroca, mais notadamente Bach; com os músicos da Orquestra de Champs-Elysées, toca os compositores românticos, entre eles franceses como Berlioz, claro, mas também Beethoven e Bruckner; e, com o Ensemble Oblique, encara os autores do final do século 19 e da vanguarda radical do século 20, como Mahler e Arnold Schoenberg. Ele vai reger em São Paulo justamente um dos pilares do repertório do século 19, a Sinfonia Fantástica de Berlioz - do concerto, participa o ator Marco Ricca que, no papel do compositor, vai falar ao público sobre a gênese da obra. Na entrevista a seguir, Herreweghe fala sobre a sua relação com a música e os métodos de interpretação que julga corretos. O senhor estudou psiquiatria na universidade. Como deixou a medicina para se dedicar à música? Na verdade, seria mais correto talvez dizer que o caminho foi contrário. A música esteve em minha vida desde cedo, quando ainda criança comecei a estudar piano. Minha mãe era pianista e, com três anos, eu já experimentava o piano. Aos 15, me formei no conservatório. Um ano mais tarde, comecei a trabalhar com o coro da escola, regia apresentações de Bach. Foi mais ou menos nessa época que me interessei pela música barroca. Bach foi um mestre em minha adolescência, aprendi muito com ele. Mas, de fato, não pensava na música como uma opção de carreira, isso seria função da medicina. No entanto, entrei em contato com alguns artistas, em especial o maestro Nikolaus Harnoncourt, que começavam a levar adiante a ideia da música historicamente informada. Eu me interessei imediatamente pela proposta e, com o apoio deles, acabei resolvendo me dedicar ao trabalho como maestro em tempo integral. O senhor poderia falar um pouco de como vê a prática da interpretação autêntica? E como ela se aplica a um compositor como Berlioz? Os músicos da Orquestra dos Champs-Elysées dedicam-se há muito tempo a esse tipo de interpretação. Nos anos 70, éramos os vilões, fomos muito criticados por buscar a autenticidade nos barrocos. Mas fomos adiante. Em determinado momento, porém, resolvemos ir um pouco além. E chegamos aos autores românticos, ao século 19. Aí, nova polêmica. Mas fazemos o mesmo que qualquer outro artista deveria fazer, ou seja, buscar uma leitura mais próxima das intenções originais do compositor. Em Berlioz, por exemplo, não se trata apenas da utilização de instrumentos construídos segundo os modelos da época. Há também questões de interpretação, ausência de vibrato, preocupação com o legato. Na música de Berlioz, o colorido orquestral é muito importante. E a maneira como o interpretamos reduz a força orquestral em quase 50%, o que nos permite observar todas as cores de maneira mais interessante e original. Cada um de seus grupos trabalha com um período específico, mas o senhor trafega por todos eles. Esse tipo de busca pela autenticidade oferece um olhar diferente sobre como as várias épocas dialogam entre si? A crença fundamental, entenda, é de que a obra de arte só atinge sua força máxima quando interpretada sem adaptações que sigam os gostos de novas épocas. Quando comecei a gravar a integral das sinfonias de Bruckner, a crítica reagiu de maneira muito violenta até e colegas músicos de sinfônicas modernas foram no mesmo caminho. "Tudo bem, vocês roubaram Bach e Mozart da gente. Depois começaram a flertar com Beethoven. Agora, então, querem nos tirar Bruckner?". Não estamos roubando nada de ninguém. Apenas acreditamos que interpretar é se aproximar o máximo possível do espírito de uma música e ele não vai ser encontrado nos nossos dias mas, sim, nas ideias do momento em que ela foi escrita. Estamos falando então em um mundo em que as orquestras tradicionais vão desaparecer? Não precisa ser nada tão trágico (risos). Mas os músicos precisam aprender a compreender a evolução da interpretação. Para cada música, é preciso uma atitude diferente, instrumentos diferentes. Em 20 anos, não haverá mais como negar isso. Agora, claro, uma situação assim exige que os músicos não se acomodem. Um clarinetista passa anos no conservatório para se formar e tem que estar disposto a estudar ainda mais para compreender como seu instrumento era tocado em outras épocas. Enfim, a realidade é que hoje na Europa é impossível tocar Bach, Mozart ou Haydn como se fazia há 50 anos. Eu não sou um fundamentalista, há coisas lindas feitas nessa época. Mas o mundo musical hoje aponta na busca cada vez maior pela autenticidade. Esse movimento vai ganhar, tem que ganhar. E não é por acaso que orquestras tradicionais têm chamado especialistas para trabalhar repertório. A História da Música em quatro discos BACH: Com a Chapelle Royale, Phillipe Herreweghe gravou as principais obras de Bach. O destaque está nas Paixões do compositor, entre as quais a Paixão Segundo São Mateus, com um elenco de primeiro time, símbolo da busca por interpretações autênticas da música barroca. BRAHMS: Entre os autores românticos, o maestro belga tem preferência assumida por Johannes Brahms e Anton Bruckner. Aqui, ele grava uma das grandes partituras corais da história da música, o Réquiem Alemão, visão bastante particular de Brahms sobre a crença em Deus e a mortalidade. BEETHOVEN: A música do compositor, por si só, já é paradigma para qualquer músico. No entanto, vista como passagem entre o classicismo e o romantismo, ganha sentido mais amplo na busca pela autenticidade que respeita ideias da época de composição. Aqui, o registro de Herrewehe para a Nona Sinfonia. MAHLER: Aqui, Herreweghe une o fim do romantismo ao início do modernismo. Grava A Canção da Terra, de Mahler, escrita na primeira década do século 20, mas na versão de câmara feita por Schoenberg, principal nome da vanguarda da primeira metade do século 20.

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