Mal comparando, seria como uma repetição do gesto radical de São Francisco, o fundador da ordem mendicante que se despiu diante do pai rico e renunciou à herança, seguindo em frente para abraçar seu papel de missionário. O empresário mineiro Bernardo Paz, aos 73 anos, não chegou a tanto, mas segue no caminho do religioso italiano, cujo sobrenome, por coincidência, era Bernardone. Vai doar tudo o que está em Inhotim, o maior museu a céu aberto do Brasil. A doação de Paz encabeça o projeto O Inhotim de Todos e Para Todos, cujo objetivo é fortalecer a vocação pública da instituição. Em entrevista exclusiva ao Estadão, Paz anunciou a doação para o Instituto Inhotim, que cuida do museu criado por ele em 2006. Homem que fez fortuna com minério de ferro, Paz foi acusado (e absolvido) de lavagem de dinheiro por meio de Inhotim. Desceu aos infernos ao ser condenado a nove anos e três meses de reclusão. Julgado inocente, passou dois anos isolado, em depressão, e renasceu das cinzas para firmar esse acordo com a direção e os conselheiros do Instituto Inhotim.
Por meio desse acordo, Inhotim e seu Jardim Botânico, instalado numa área de 140 hectares em Brumadinho, Minas Gerais, passam às mãos do Instituto Inhotim junto à coleção particular do empresário, um dos mais importantes acervos de arte contemporânea do Brasil. São 330 obras de grandes dimensões produzidas por quase meia centena de artistas em exposição permanente. Com a doação anunciada pelo empresário, elas foram definitivamente incorporadas ao acervo histórico do instituto, que administra o extenso território de Inhotim, localizado entre os ricos biomas da Mata Atlântica e do Cerrado. Nesse jardim exclusivo existem 4,5 mil espécies de plantas raras originárias de todos os continentes. É esse o legado que Bernardo Paz vai deixar ao Brasil e ao mundo – e, vale lembrar, 15% dos seus 350 mil visitantes anuais (antes da pandemia) eram estrangeiros. E foram 4 milhões deles desde 2006.
Para se ter uma ideia do que representa esse patrimônio, só um dos pavilhões mais visitados de Inhotim, o que abriga a instalação True Rouge, do artista pernambucano Tunga (1952-2016), guarda uma obra no valor de R$ 25 milhões. O Instituto Inhotim gasta por ano mais que o dobro desse valor, R$ 60 milhões, na manutenção do acervo e do Jardim Botânico, segundo o seu diretor Lucas Pessôa. Desse total, Bernardo Paz responde por R$ 40 milhões e o restante vem de doações via Lei Rouanet e bilheteria. Durante a pandemia, Inhotim ficou fechado, exigindo, segundo Paz, um investimento de R$ 100 milhões em sua manutenção (valor bancado pelo empresário). Depois da pandemia, o número de visitantes caiu de 350 mil para 150 mil por ano, mas esse número tem crescido desde então.
“Inhotim é minha vida, larguei tudo para tocar essa obra”, conta Paz, fumando compulsivamente, a despeito das recomendações de seu médico (ele teve um AVC aos 45 anos, em Paris, e recentemente se submeteu a duas cirurgias). E a obra não parou. Continua ‘in progress’.
Hoje com 430 funcionários (dos quais 100 são jardineiros), o Instituto Inhotim retomou as obras do hotel na área (com 45 quartos) e projeta a construção de novos pavilhões – como se sabe, cada um dos 23 pavilhões atuais (19 permanentes e quatro temporários) abriga a obra de um único artista. E são nomes de projeção internacional, de Tunga a Matthew Barney, passando por Hélio Oiticica e Yayoi Kusama.
A ideia de criar Inhotim, lembra Paz, surgiu há mais de 50 anos. “Em 1971, estava hospedado num hotel de luxo de Acapulco, no México, quando pensei: é o jardim mais lindo do mundo, mas separa por um muro os hóspedes ricos e a miserável população local”. Paz, então, considerou a possibilidade de criar um jardim ainda mais belo, ao qual teriam acesso os ricos e os deserdados da sociedade. Pode parecer discurso de político, mas Paz parece sincero ao dizer que, nesta segunda fase de Inhotim, gostaria de ver o instituto mais empenhado na inclusão social dos menos favorecidos.
Comove ouvir o discurso do empresário Bernardo Paz, fundador de Inhotim, a favor das populações indígenas e dos negros – e o museu a céu aberto abriu um pavilhão permanente só para a fotógrafa Claudia Andujar exibir as fotos que fez dos ianomâmis e um outro temporário para contar a trajetória de Abdias do Nascimento e seu Teatro Negro.
É o discurso de um homem sofrido, subestimado pelo pai, que fez fortuna incorporando mineradoras e plantando eucaliptos no Cerrado, até chegar a administrar um conglomerado de 29 empresas na área de mineração e siderurgia. O grupo, segundo notícia divulgada antes da pandemia, teria sido vendido por US$ 1,2 bilhão para uma estatal chinesa, soma que liquidaria as dívidas dos sócios, mas esse negócio é negado por Paz. “Não vendi nada para os chineses. Quem cuida das minhas empresas é o meu irmão Cláudio.”
Família é um núcleo importante na vida de Paz, casado várias vezes (uma com a pintora Adriana Varejão, que tem pavilhão em Inhotim). “Doei tudo o que está aqui em Inhotim e nenhum dos meus sete filhos brigou por causa de minha decisão”, conclui. “Posso garantir que eles ficaram felizes.”
Para garantir a sustentabilidade do instituto, o empresário retomou as obras de construção do hotel e estaria empenhado na instalação de um aeroporto em Brumadinho, mas perdeu a licença e não conseguiu ainda sua aprovação. Esse é um item fundamental num projeto que pretende atrair cada vez mais visitantes estrangeiros, pois Inhotim fica a uma hora de viagem de Belo Horizonte. “Lá fora, quando você conversa com diretores de museus e curadores sobre o Brasil, todos só lembram de Inhotim”, diz ele.
Paz criou um conselho de 20 notáveis que não dão só palpites sobre a administração de Inhotim, mas pagam para ajudar na manutenção do patrimônio. “Nada mais justo”, argumenta. “Se eles são patronos do MoMA e da Tate, por que não ajudar um museu brasileiro?”
É possível afirmar que as exposições temporárias abertas na última semana de maio em Inhotim representam uma mudança radical de orientação da nova direção do instituto (o diretor Lucas Pessôa, a diretora artística Julieta González e a vice-presidente Paula Azevedo). Agora, Inhotim não é só um museu com gigantescos pavilhões permanentes para artistas consagrados, mas um centro de discussão sobre a produção artística contemporânea, especialmente aquela pouco representada nas instituições oficiais. As provas dessa mudança são as mostras abertas no dia 28, entre elas a do fotógrafo e cineasta inglês Isaac Julien, gay e negro, outra sobre as origens do Teatro Experimental do Negro, criado pelo diretor e pintor Abdias do Nascimento, e ainda duas instalações poéticas, uma do carioca Arjan Martins e outra da mineira Laura Belém.
O fundador de Inhotim, Bernardo Paz, vibra com a nova fase de Inhotim, mais inclusiva. “A nossa é a única coleção brasileira realmente internacional, mas faltava dar mais atenção aos artistas negros e indígenas”, observa, prometendo construir um pavilhão totalmente dedicado à arte da diáspora africana – e o artista Dalton de Paula, nascido em Brasília há 40 anos, surge como o candidato perfeito para ser a figura central. Justo. Ex-bombeiro formado em Artes Visuais em Goiânia, Dalton é um nome consagrado no circuito internacional (seu retrato de Zumbi foi exposto no MoMA e na 32ª. Bienal de São Paulo).
Isaac Julien fez um percurso semelhante, lutando para afirmar sua condição de afrodescendente até chegar a uma produção sofisticada como o filme Looking for Langston, em exibição na mostra temporária dedicada ao cineasta por Inhotim. A obra, um média metragem de 42 minutos realizado em 1989, faz parte do acervo da Tate Britain e aborda a vida do poeta norte-americano Langston Hughes e o renascimento do Harlem – anos 1920, era do revival da cultura afro-americana na música, moda, literatura e no teatro.
Julien assina não uma cinebiografia convencional de Hughes (1902-1967), mas uma docuficção da luta dos negros pela inserção social e contra o preconceito, seja no Harlem de um século atrás ou na Londres dos milicianos da era Margareth Thatcher (1979-1990), tudo filmado com absoluto requinte (em preto e branco). Detalhe: a voz da Nobel Toni Morrisson surge em ‘off’ lendo um texto no funeral do escritor James Baldwin, em que o autor de Giovanni relata como foi difícil para ele viver como negro e gay numa sociedade supremacista e intolerante como a americana. Julien foi buscar na poesia de Hughes um testemunho semelhante, no qual ele (que jamais assumiu publicamente sua homossexualidade) fala de um amigo ausente.
Igual preconceito racial sofreu o dramaturgo, político, ativista e pintor brasileiro Abdias do Nascimento (1914-2011), fundador de entidades pioneiras como o Teatro Experimental do Negro (TEN) e o Museu da Arte Negra. Em parceria com o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), o Instituto Inhotim reuniu, em sua Galeria da Mata, pinturas, fotos e documentos históricos, entre eles uma carta do próprio Langston Hughes autorizando a encenação de sua peça O Mulato, em 1954, pelo TEN (que começou com uma montagem de O Imperador Jones, de Eugene O’Neill, em 1945, primeira vez que um ator negro pisou no palco do Municipal carioca).
Abdias, descendente de escravos, cuja avó padeceu no manicômio do Juqueri, foi perseguido tanto por Getúlio Vargas (que censurou sua peça Sortilégio) como pela ditadura militar. Montou um grupo de teatro no presídio do Carandiru e, após a promulgação do AI-5, em 1968, mudou-se para os EUA, onde virou professor e pintor. A mostra inclui fotos das montagens dirigidas por Abdias, pinturas suas que tratam do universo religioso afro-brasileiro e telas de grande pintores negros como Rubem Valentim.
Ainda que não trate diretamente da condição do negro, a instalação montada agora em Inhotim pelo artista carioca Arjan Martins, Birutas (2021), lida com as migrações, as diásporas e os movimentos coloniais históricos em territórios afro-atlânticos. Arjan usa “birutas” com as cores do Código de Navegação relacionando-as às intempéries, metáfora para a turbulência em que vivemos.
Outro momento lírico da nova safra de Inhotim é a instalação Enamorados, de Laura Belém, já apresentada na Bienal de Veneza. Sobre o lago, dois barcos a remo, equipados com holofotes e colocados frente a frente, substituem a presença humana com luzes que se acendem no intervalo de 20 segundos, invertendo-se a ordem até que o ciclo se reinicie automaticamente. É uma ótima parábola para Inhotim, que passou da escuridão da pandemia para uma iluminada nova era.
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