“Era um miserável e estava perdido. Estava perdido, mas fui encontrado. Era cego, mas agora vejo.” A autodefinição do traficante de escravos inglês John Newton (1725-1807) virou hino religioso em 1779 e se espalhou pelo mundo, especialmente entre a comunidade batista e metodista negra, o que pode parecer um paradoxo, mas não se consideramos que Newton testemunhou uma epifania e se converteu ao cristianismo. Amazing Grace é o nome do hino e virou A Maze in Grace na performance inédita do compositor e libretista sul-africano Neo Muyana, de 46 anos. É a primeira ação da 34.ª Bienal Internacional de São Paulo, que será oficialmente aberta em setembro. A performance acontece neste sábado, às 11 horas, no pavilhão da mostra, no Ibirapuera, simultaneamente à abertura (às 9h) da exposição da peruana Ximena Garrido-Lecca.
Batizada de Faz Escuro Mas Eu Canto, a 34.ª edição da Bienal justifica o título, emprestado do livro homônimo do poeta Thiago de Mello (1965). Não que a mostra tenha um eixo temático, esclarece o curador Jacopo Crivelli Visconti. Trata-se apenas do reconhecimento dos tempos difíceis que o mundo atravessa e da possibilidade de a arte mudar esse estado de coisas. A Maze in Grace é um possível exemplo: o trocadilho com o título original do hino de Newton (Amazing Grace / Sublime Graça) sugere que Neo Muyana vê a situação como um labirinto (maze), do qual só sairemos por esforço próprio. Em tempo: Neo não é jansenista. Não acha que a graça caia onde ela quer.
“Como toda criança negra, cantava Amazing Grace sem associar o conteúdo do hino à biografia do autor, e só mais tarde, ao ler sobre Newton, descobri que ele participou do comércio atlântico de escravos”, conta Neo. John Newton julgava ter sido punido pelo tráfico de seres humanos e, em 1748, durante uma borrasca que fez seu navio bater na costa do condado irlandês de Donegal, implorou por misericórdia. Deus atendeu, mas ele continuou a traficar escravos. Arrependido, começou a estudar teologia e foi finalmente ordenado pastor anglicano em 1764, influenciando o movimento abolicionista.
No vão central do prédio da Bienal, orçada em R$ 30 milhões (R$ 12,5 milhões para a produção de obras), um navio negreiro estilizado domina o cenário. Por ele vão circular 40 vozes cantando Amazing Grace com o acompanhamento de trompete, tuba e percussão. “É uma interpretação que não segue a tradição ‘spiritual’ religiosa, mas, antes, vê o problema do racismo segundo a perspectiva da diáspora, do preconceito ainda dominante tanto aqui como na África do Sul”, resume Neo, esclarecendo que a sua versão é laica, mas não sarcástica.
Igualmente crítica em relação ao que se passa em seu país, a peruana Ximena Garrido-Lecca apresenta nesta 34.ª Bienal instalações e vídeos que fazem referência à desagregação cultural do Peru. A instalação Proyecto País, que integra a série Paredes de Progresso (2008/2012), é uma representação metafórica desse fenômeno. A artista explica que o muro pintado com a inscrição Proyecto País faz referência aos slogans políticos inseridos em construções precárias de adobe que se dissolvem com o tempo, apagando os vestígios tanto da técnica de construção como das mensagens: “Proyecto País fala de signos que se mesclam com a paisagem natural por meio de muros antigos abandonados que trazem promessas de políticos nunca realizadas”. Exatamente como o do pequeno partido de centro-esquerda populista que dá nome ao muro, desaparecido em 2008, segundo a artista.
Outra instalação de Ximena Garrido-Lecca na mostra, Insurgência Botânica (2017), parece mais lírica, mas nem por isso menos alegórica. Uma estrutura hidropônica com mudas de favas da espécie Phaseolus lunatus foi montada em sua sala para reativar, como ela diz, “o sistema de comunicação da cultura moche, civilização pré-hispânica que desenvolveu uma escrita enigmática como os hieróglifos e um sistema hidráulico de irrigação muito complexo”.
A arte da peruana não vive só de emular culturas ancestrais. Há uma instalação que se refere às marcações de migrantes feitas para reivindicar a posse da terra e um vídeo que documenta ocupações modernas em torno de Pucusana. E isso é apenas o começo. O curador geral da Bienal, Jacopo Crivelli Visconti, destaca a “pluralidade” da mostra resultante de uma seleção “horizontal” feita pelos curadores. A Bienal vai ter tanto artistas da nova geração como históricos (o italiano Giorgio Morandi e o brasileiro Hélio Oiticica).
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