Qual cena lhe vem primeiro à cabeça ao lembrar da Avenida Paulista? Uma manifestação em frente ao Masp? Gente engravatada saindo da estação do metrô? Ciclistas com mochilas de delivery? Uma aglomeração em torno do cover de um cantor pop?
Em seu novo livro, Carlos Fadon Vicente nos convida a ultrapassar esses imaginários e enxergar o que ficou no passado, o que dele ecoa no presente e o que ignoramos enquanto percorremos o principal cartão postal de São Paulo.
Avenida Paulista: fotografias, 1983–2015 apresenta um ensaio desenvolvido pelo artista visual em torno da emblemática via. É um trabalho de fôlego, desenvolvido durante 32 anos e registrado em mais de 300 rolos de filme de formato 6x6 cm.
Deles, foram extraídas 152 imagens para compor o volume, editado agora pela Companhia de História com tiragem limitada a 300 exemplares e prefácio do fotógrafo e historiador Boris Kossoy. O lançamento ocorre neste sábado, 23, das 10h30 às 13h, no Instituto Tomie Ohtake, com direito a palestra do autor.
Todas as fotos reunidas são em preto e branco e se concentram sobre a paisagem urbana. Desprovidos do estímulo da cor e recortados pelas lentes de Fadon, elementos como o céu, a vegetação, prédios, sinalizações e cartazes se articulam e ganham novas camadas de sentido ao exigir uma postura ativa do observador.
“Quem está na Paulista, em geral, vai em busca de algum serviço ou para algum compromisso. O flanar é muito raro. Mas fotografia de rua significa justamente prestar atenção”, afirma o artista.
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Para quem tem os contornos da avenida na memória, folhear o livro é um exercício constante de estranhamento e reconhecimento. Cada nova imagem é acompanhada pela vontade de identificar qual trecho está na página - mesmo que hoje ele não siga daquele jeito.
Nos poucos enquadramentos com pessoas à mostra, elas surgem distantes da câmera, com aspecto fantasmagórico, ou borradas, evocando o frenesi costumeiro da região. A nitidez fica restrita, quase exclusivamente, a modelos femininas estampadas em cartazes publicitários, testemunhas estáticas do vaivém dali.
O movimento que realmente interessa Fadon é sutil e está atrelado ao curso das décadas. “A avenida é um ser em fluxo. Ela se caracteriza por ter passantes, tanto pessoas quanto veículos. Mas a arquitetura e os usos dela também mudam ao longo do tempo."
Quando a série foi iniciada, a Paulista era permeada de casarões erguidos na época na qual o café movia a economia do estado. A maioria deles deu lugar a arranha-céus. O ensaio captura com cuidado os contrastes entre essa destruição e o elogio ao progresso. A única informação textual é o ano da tomada das fotos, cuja disposição deixa de lado a cronologia para se orientar pelo diálogo estabelecido umas com as outras.
Apesar de não terem qualquer pretensão documental, algumas imagens registram momentos significativos. Uma delas exibe a fachada do Shopping Center 3 pouco após o incêndio responsável pelo desabamento de uma de suas torres, em 1987. Outra revela parte da Mansão Matarazzo demolida, em 1996, antes de ela ser cercada por tapumes. O terreno hoje abriga o Shopping Cidade São Paulo.
Há ainda imagens feitas aos pares, com o mesmo enquadramento, mas em datas distintas, provocando uma sensação de “jogo dos sete erros”. Em 1983, vemos o portão da Casa das Rosas fechado. Ele guarda uma árvore frondosa e, acima dela, o céu brilha sem nuvens. Em 1995, o portão está aberto, a árvore não figura mais lá e um prédio envidraçado corta o cenário ao fundo. O céu pouco aparece.
O formato escolhido - praticamente o dobro dos convencionais 35mm - cria fotos de alta resolução, realçando detalhes, contrastes de luz e texturas, como a transparência das vitrines e seus reflexos. Durante o ensaio, foram utilizadas duas câmeras. Depois de desenhar os quadros na cabeça, os equipamentos eram montados sobre o tripé para o disparo.
“É um refinamento de composição ao mesmo tempo preciso e impreciso, no sentido que, na rua, não tenho controle do que pode acontecer.” O caráter artesanal desse processo explica, em parte, a longa duração do projeto, originado pelas primeiras inquietações do artista sobre a representação das cidades.
Fadon nasceu, cresceu, estudou e trabalhou na região central de São Paulo. Engenheiro de formação, começou a fotografar em 1975, de forma autodidata, e encontrou na avenida Paulista, pela qual passava cotidianamente, um objeto instigante sobre o qual exercitar o olhar.
“Nos primeiros anos havia uma dedicação mais intensa, pois se tratava de uma descoberta. O ensaio se estende no tempo porque há uma decantação da observação”, explica o fotógrafo, que estende sua atuação também por colagens, recursos digitais e hipermídia.
Em 2015, Fadon decidiu encerrar a série. Conseguir filmes para seguir de forma analógica se tornou caro, e ele não tinha interesse em migrar para o digital. O fator decisivo, no entanto, foi outro. “É preciso saber quando abandonar um projeto. Percebi que já tinha material suficiente. Nada do que eu pudesse acrescentar seria significativo.”
Uma primeira passada pelo livro evidencia o esgotamento ao qual ele se refere. Por mais que muitas outras mudanças tenham sido encampadas na Paulista de 2015 até hoje, todas apenas reforçam o discurso construído pelo artista no transcorrer das páginas. Daí para a frente, o único avanço possível se dá no entrelaçamento da obra com o público.
Das conversas entre uma imagem e as seguintes surgem personagens, histórias e relações. A cada revisão, elas se combinam de maneiras variadas, provocando um senso contínuo de novidade. Esse frescor inspira uma abordagem mais generosa com a própria Paulista, desfazendo visões já muito arraigadas e abrindo espaço para a produção de diferença.
Ao colocar a percepção do leitor em movimento tal como a própria avenida Paulista, Fadon reabilita a dura poesia concreta da maior metrópole da América do Sul. Acredite ou não, ainda há lirismo em Essepê.
Serviço
- Avenida Paulista: fotografias, 1983–2015, de Carlos Fadon Vicente
- Editora Companhia de História, 236 pp. R$ 320.
- Lançamento no sábado, 23, das 10h30 às 13h, no Instituto Tomie Ohtake (R. Coropés, 88, São Paulo, SP)
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