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Conversa de coisas surpreendentes

Mesmo com canções 'difíceis' para seu público tradicionalista, Zii e Zie, a nova obra de Caetano Veloso, progride no palco

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Por Crítica Lauro Lisboa Garcia

Nem sempre bons discos rendem bons shows - e vice-versa. Zii e Zie, de Caetano Veloso, que enfim aterrissou em São Paulo no fim de semana, tem canções que compatibilizam com a acústica do local onde foi apresentado, o nefasto Credicard Hall: parecem não ter solução, mas podem surpreender. Apesar da reverberação persistente, o som que vinha do palco estava bom. Os desavisados que acabaram reclamando de "ter pago caro pra ver aquilo" deviam se informar melhor antes de sair de casa antes de se arriscar. As canções podem ser um tanto "difíceis", não correspondem à expectativa dos tradicionalistas que se deliciam com O Leãozinho, mas o show está longe de ser desprezível. Ao contrário, a obra recente de Caetano ganha vulto e progride no palco, impulsionada por sua verve de transgressor. Com a feliz cumplicidade da ótima Banda Cê, formada por Pedro Sá (guitarra), Ricardo Dias Gomes (baixo e teclado) e Marcello Callado (bateria), Caetano converte o transambista ou transroqueiro em neotropicalista. Reprocessa o passado psicodélico e faz as coisas conversarem "com coisas surpreendentes", como diz na letra de Eu Sou Neguinha?, com que encerra o roteiro, cheio de dengo e trejeitos provocativos, em interpretação e arranjo mais fortes do que na gravação original. O bis ainda tem Incompatibilidade de Gênios (João Bosco/Aldir Blanc) um tanto menos interessante do que no disco e no show preparatório deste (Obra em Progresso), Manjar de Reis (Jorge Mautner/Nelson Jacobina), Três Travestis (que, pelo baixo grau de aceitação, pouca gente entendeu o propósito) e Força Estranha (dedicada com um viva a Roberto Carlos). Um anticlímax sem concessões a greatest hits dançantes. Manjar é do ótimo álbum que ele gravou com Mautner e foi produzido por Kassin. Do mesmo CD, Tarado é melhor que Tarado ni Você e Coisa Assassina poderia casar com Odeio - grande momento roqueiro do show e única canção do álbum anterior, Cê - pelas referências críticas à cocaína. Kassin, além de citado na letra de Lapa (outro destaque), assina outra das melhores canções do bem amarrado roteiro, uma Água caribenha para um Caetano rebolativo. De latinidad também tem a tradição de um tango de Gardel, Volver, traduzido para a nova linguagem sonora, minimal. Caetano e banda já estão posicionados no palco quando as cortinas se abrem e eles mandam ver sem rodeios A Voz do Morto, pérola tropicalista que ele fez para Aracy de Almeida e gravou com os Mutantes em 1968. "Viva o Paulinho da Viola", brada com veemência, saudando essas glórias nacionais, misturando rock, samba e kuduro, citando Psirico e Fantasmão. Em seguida vem Sem Cais e uma versão balsâmica, levíssima, da contemplativa Trem das Cores. Perdeu, faixa de abertura de Zii e Zie, é uma das que crescem ao vivo. Do novo álbum, aliás, só faltaram Ingenuidade (Serafim Adriano), samba gravado por Clementina de Jesus em 1976, e Diferentemente. O passado experimentalista volta revigorado em Não Identificado (emocionante, talvez o ápice de tudo), em que ele brinca com a asa delta que compõe o cenário, e na linda sequência que reúne as homenagens a duas de suas irmãs, Maria Bethânia (da fase londrina) e Irene (do "álbum branco"). A primeira ele dedicou ao extraordinário teatrólogo Augusto Boal, recém-morto, e aproveitou para reforçar sua ligação afetiva com São Paulo. Foi aqui que ele e Bethânia aprenderam muito com o "grande mestre", uma "pessoa inesquecível". A asa delta e os vídeos projetados constantemente no telão ao fundo têm relação com o Rio, mas a sonoridade carregada, com solos cheios de distorções de Pedro Sá, como em Perdeu, tem mais a ver com o caos urbano da capital paulista mesmo. As costuras dissonantes e temáticas de algumas letras são mais interessantes do que algumas das novas canções em si, como é o caso de Lobão Tem Razão. As antigas respiram novos ares pela salutar integração de Caetano com a banda. Ele fica sozinho ao violão em apenas uma canção, a bonita e amorosa Aquele Frevo Axé, uma das que têm relação ou citam o carnaval. Canção-título de um álbum de Gal Costa (subestimado pela própria cantora), está bem no meio do roteiro. A maioria das novas canções não tem a mesma fluência melódica que esta e outras delícias recuperadas dos anos 1960 e 70. Porém, para além do significado subjetivo - tédio para uns, júbilo de descoberta para outros -, o voo livre de Caetano é coerente com seu histórico de inquietação. Ao contrário do que fazia em Obra em Progresso, ele falou pouco com a plateia - que tinha Arnaldo Antunes, Seu Jorge, Bob Wolfenson, Zé Pedro e Péricles Cavalcanti, entre outros -, mas estava visivelmente satisfeito. "Isto é São Paulo", disse diante de aplausos entusiasmados. "Obrigado, São Paulo. Esta é a terra", prosseguiu. Até provocou risos no final, ao conferir com o olhar os limites do palco, quando cantava Força Estranha, para evitar repetir o episódio do tombo em Brasília durante essa canção.

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