Não é difícil perceber o quanto design e arquitetura têm em comum e a história é farta de exemplos de incursões bem-sucedidas de arquitetos - e arquitetas -, no desenho de mobiliário. Apesar da considerável diferença de escala, para muitos profissionais existe uma clara relação de continuidade entre os processos de desenhar móveis e o de projetar edifícios. Segundo eles, seja qual for o objeto em questão, elementos construtivos, estruturais e estéticos deverão ser igualmente observados. E, nos dois casos, o projeto será dirigido a humanos.
Ainda assim, enquanto na arquitetura a maioria dos holofotes sempre teve como alvo o trabalho de arquitetos, nos domínios do design a presença feminina nunca deixou de se fazer notar. Desde pioneiras como Eileen Gray, Charlotte Perriand e Ray Eames, até os dias de hoje, quando é cada vez maior o número de arquitetas que, a exemplo da ítalo-brasileira Lina Bo Bardi - citada como influência permanente por muitas delas -, migraram, em definitivo ou não, do canteiro de obras para o chão de fábrica.
De fato, aplicando ao mobiliário a mesma postura libertária que exercitava em sua arquitetura, não surpreende que a arquiteta - responsável, entre outros, pelos projetos do Masp e do Sesc Pompeia - seja tomada como referência sempre que o assunto ‘mulheres e design’ vem à tona. Enquanto cultivava o rústico e natural, Lina tinha particular apreço por formas industriais e matérias-primas como vidro e aço. Mesmo quando empregados em flagrante contraste com elementos artesanais, como redes indígenas e couro nordestino.

Inovadora
“Sinto-me profundamente influenciada pela abordagem inovadora e humanista de Lina. O que mais me impressiona é sua capacidade de incorporar a cultura e a identidade brasileiras a seus projetos. Ela entendia que a arquitetura e o design não existiam em um vácuo, mas sim como parte de uma cultura e de uma sociedade”, declara Fernanda Marques - que, nas últimas décadas, em paralelo ao trabalho como arquiteta, tem se dedicado a desenhar os mais variados objetos. De móveis a cubas cerâmicas, de luminárias a joias.
“A transição de um campo para o outro é inevitável, pois os limites entre a arquitetura e o design estão cada vez mais fluidos. Além disso, penso que um objeto pode ser mais eficaz se projetado para se integrar a um espaço arquitetônico”, afirma Fernanda que, em um projeto recente, o sofá Landscape, produzido pela Breton, procurou dotar o móvel de um desenho integral. “Não existem ‘costas’, nem a obrigação de encostar a peça na parede. Concebi esse sofá para ser usado - e contemplado - em sua totalidade. Daí o seu nome”, explica ela.
Há seis anos à frente da direção criativa da Artefacto - função que envolve não apenas a elaboração de uma coleção anual de móveis, mas, igualmente, o conceito por trás dela -, a arquiteta paulistana Patrícia Anastassiadis é outra profissional para quem o design surgiu de forma espontânea, natural. “Em algum momento, você acaba desenhando algo único para seus projetos. Com o tempo, acaba se habituando. Até que a criação ganha corpo e você começa a pensar em alçar voos mais altos.”

Recentemente, dois de seus móveis criados para a marca paulista - a poltrona giratória Pollux, de 2022, e o balanço Seed, de vime, lançado em 2021 - foram premiados com o Good Design Award, a mais antiga premiação internacional do segmento, estabelecida em 1950 pelo casal Charles e Ray Eames e pelo designer Eero Saarine. Uma distinção que funciona, na prática, como um atestado de excelência global. “Ao que parece, os produtos conquistaram o júri não só pela estética, mas, pela sua funcionalidade”, pondera a designer.
Mais conceitual, a coleção 2023 da Artefacto Patrícia contempla um mundo em transformação. Mais especificamente o microcosmo de uma casa que busca se harmonizar com seus moradores, mas também com o planeta. Daí a referência à alquimia: a mítica ciência medieval, revisitada pela arquiteta para caracterizar uma coleção de móveis mais ágil e flexível. Mais “transmutáveis”, segundo ela. Como a poltrona com pufe Mentha, que pode proporcionar momentos de relaxamento, funcionar como posto de trabalho ou ainda servir de apoio para as refeições.
Modernista
“Vejo a escrivaninha Marajoara como uma releitura artesanal de um típico móvel utilitário modernista. A estrutura é a própria estética e o diferencial do produto”, declara a arquiteta Juliana Bertolucci que, ao lado do marido Clement Gérard, dirige hoje o Atelier BAM de Design. “A peça conjuga a eficiência do modernismo com o caráter único do artesanal, com todos os seus detalhes singulares”, descreve ela, que acredita manifestar uma clara herança modernista em todos os seus projetos. Sejam eles de arquitetura ou de design.

Outra declarada influência, a presença de Lina Bo Bardi, vai além do aspecto profissional. Para ela, Lina permanece uma referência não só como arquiteta e designer, mas como mulher. “Ela batalhou e projetou em um período da história muito masculino. Utilizou materiais vernaculares, inusitados. Foi uma verdadeira desbravadora”, afirma Juliana. “Além disso, tinha uma visão ampla da função do arquiteto. Respeitava a natureza, valorizava o convívio entre as pessoas. Por tudo isso, penso que sua obra não poderia ser mais atual. E necessária”, conclui.