NOVA YORK - Estamos acostumados a filmes - geralmente aventuras, como Indiana Jones - com falas que atravessam o mundo e se passam entre capitais globais, nos mostrando para onde nossos personagens estão viajando. The Lost Leonardo, um documentário sobre a redescoberta de uma pintura de Leonardo da Vinci, começa com uma fala dessas. Mas suas paradas internacionais, narrando em detalhe as vendas da pintura, são passagens chocantes. Nova Orleans, 2005: US$1175. Londres e Genebra, 2013. US$ 83 milhões, depois, US$ 127 milhões. Arábia Saudita, 2017. US$ 450 milhões.
Essa é a jornada cheia de mudanças de Salvator Mundi, uma pintura de Jesus Cristo atribuída a Leonardo da Vinci está envolvida em mistérios e intrigas desde que foi adquirida, restaurada e celebrada pela primeira vez como um original perdido do mestre renascentista. The Lost Leonardo, que a Sony Pictures Classics lança nos cinemas dos Estados Unidos na sexta-feira, retrata de forma envolvente a improvável saga como um thriller internacional tão indefinido quanto qualquer romance de John Le Carré.
Para seu diretor, o cineasta dinamarquês Andreas Koefoed, é também uma espécie de conto de fadas sombrio, com direito a um príncipe e um tesouro perdido. Antes de mais nada, talvez, seja um retrato de um mundo da arte onde obras-primas podem servir como capital global.
“Existe essa ideia romântica da arte como algo puro e uma expressão bela do ser humano ao longo da história, e, então, nos deparamos com esse mundo muito cínico e capitalista”, diz Koefoed, falando por Zoom de Copenhague. “É um coquetel explosivo em conjunto.”
A venda da pintura em 2017 superou os recordes anteriores de valores pagos por obras de arte. Mas ela foi adquirida pela primeira vez, como em um episódio forçado do programa de TV Antiques Roadshow, em uma liquidação de patrimônio na Louisiana. Enquanto olhavam sem compromisso o que havia ali, dois negociantes de arte de Nova York acreditaram que valia a pena comprá-la para examiná-la melhor. Eles a levaram para uma das principais restauradoras da área, Dianne Dwyer Modestini, que cuidadosamente removeu a pintura pesada que a revestia e consertou outros danos do decorrer dos séculos.
Pouco a pouco, ela e outros começaram a pensar que a pintura não era obra de um pupilo de Leonardo, como outrora suspeitavam, mas do próprio mestre.
A ligação de Dianne com a pintura era particularmente forte. Ela trabalhou nela por três anos depois da morte de seu marido, o restaurador italiano e comprador de arte Mario Modestini.
“Não é apenas uma pintura. É mais do que isso”, disse Dianne por telefone, de seu apartamento em Nova York. “É um objeto impregnado de poder. Isso soa um pouco estranho e piegas, mas eu acredito nisso. Quando estava trabalhando nela, tive a experiência de sentir que meu marido estava ao meu lado o tempo todo. E eu não poderia ter feito isso sem ele. ”
Muitos historiadores de arte e instituições - como o National Gallery de Londres, que expôs a pintura em 2011 - chegaram à mesma atribuição em relação à autoria. (Dianne criou um site com detalhes técnicos a respeito de suas descobertas.) Mas nem todos concordam com as conclusões dela. No filme, o crítico de arte Kenny Schachter brinca que se trata de uma "pintura contemporânea" por ter sido fortemente restaurada.
O crítico de arte Jerry Saltz chama isso de “não mais real do que qualquer um dos golpes e esquemas inventados por pessoas que podiam não ter a intenção de trapacear, mas, no fim, todos embarcaram juntos nessa”.
Com Lost Leonardo, passeamos por um mundo da arte povoado por personagens nada comuns e bilionários excêntricos. A pintura foi vendida pela primeira vez ao empresário suíço Yves Bouvier, que expandiu o uso de freeports como estações livres de impostos para produtos caros, como obras de arte. Ele pagou US$ 83 milhões, mas, na verdade, estava atuando em nome do oligarca russo Dmitry Rybolovlev, para quem Bouvier passou a pintura imediatamente por US$ 127,5 milhões. (Ao saber das táticas de negociação de Bouvier, Rybolovlev iniciou um processo judicial de grande destaque.)
No mercado de arte visto em Lost Leonardo, raramente fica claro quem está comprando e quem está vendendo. Uma pessoa diz que é o mercado menos regulamentado depois do de drogas e da prostituição. Mesmo depois de Salvator Mundi ter sido leiloada pela Christie's, não se conhecia o vencedor do leilão de US$ 450 milhões. Só mais tarde vazaram relatos de que o governante da Arábia Saudita, o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, estava por trás da compra.
Esperava-se que posteriormente Salvator Mundi fosse exibida no Louvre, mas, no fim, acabou não participando de uma grande exposição devido à recusa do museu em exibi-la ao lado da Mona Lisa, como Mohammed solicitava. Desde 2017, a pintura não é vista publicamente.
“Isso prova um ponto da história de que, de alguma forma, a verdade se perde em tudo isso”, diz Koefoed. “Há tanto em jogo, tantos interesses de poder, tantos interesses financeiros que a verdade desaparece. Não apenas perdemos uma pintura, mas também perdemos a verdade de alguma maneira.”
Koefoed, cineasta veterano de documentários, não tem formação em artes plásticas e só foi atraído pela história de Salvator Mundi após o leilão da obra render manchetes. Ele e o diretor de fotografia Adam Jandrup filmaram muitos dos entrevistados de frente, como se estivessem posando para um retrato, e usaram a iluminação para dar um toque de pintura renascentista. O filme se recusa a tomar partido nas disputas ainda latentes em relação à Salvator Mundi.
“Decidi permanecer aberto às duas possibilidades”, diz Koefoed. “Acho que é mais interessante deixar o espectador se tornar seu próprio detetive na história.”
O National Gallery, o Louvre e a Christie's se recusaram a participar do documentário. Mas, entre todos que aceitaram, ninguém tem um papel como o de Dianne. Sua experiência com a pintura e a contestada reputação da obra são representadas intimamente. Ela só tem elogios para Koefoed e seu filme, mas não tem mais energia para os debates sobre Salvator Mundi.
“Eu realmente não me importo. Sei o que sei em relação à pintura e me parece óbvia a atribuição [de autoria]. Se as pessoas tiverem outras ideias, tudo bem. Mas eu realmente gostaria de continuar com minha vida. Ela tem sido tão consumida por isso. Jamais participarei de outro filme”, diz Dianne. "Acabou para mim."
A pintura, porém, ainda tem grande importância em sua opinião. O poder da obra, afirma, só é realmente transmitido presencialmente. O efeito não pode ser fotografado. Não pode ser reproduzido.
“Ela apenas emana essa sensação extraordinária de algo totalmente além da compreensão humana”, diz Dianne. “É uma tragédia que tenha sido tão maltratada”, acrescenta, antes de refletir a respeito do fato da obra não ter sido mais vista. “É uma tragédia contínua.”
TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA
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