Uma mostra panorâmica da produção da artista mineira Rosângela Rennó será aberta neste sábado, 2, na Estação Pinacoteca. A exposição Pequena Ecologia da Imagem reúne 130 obras produzidas entre 1987 e este ano, algumas delas inéditas, como Eaux de Colonies (2021), resultado de sua residência artística em Colônia (Alemanha) e Seres Notáveis do Mundo, produzida nas Ilhas Canárias, Espanha, entre 2014 e 2021. Rosângela Rennó, que iniciou sua carreira na década de 1980 e fez sua primeira exposição individual em 1985, exibe em três salas da Estação Pinacoteca uma síntese de seu trabalho, que começou com uma investigação antropológica do universo fotográfico familiar, recolhendo imagens esquecidas ou atiradas ao lixo, e seguiu como exercício de reconstrução da memória coletiva por meio de narrativas e material pesquisado em arquivos públicos, policiais e jornais.
Além dos mencionados trabalhos inéditos, a Pinacoteca encomendou uma nova série que vai ocupar uma sala inteira da Estação com a videoinstalação Terra de José Ninguém (2021). Rosângela conta que ficou impressionada com um conjunto de aulas gravadas e distribuídas pela Igreja Católica – mais especificamente, pelos padres salesianos –, em 1980, que tentavam incentivar a luta do cidadão comum por seus direitos políticos e civis. De posse desse material, concluiu que esse instante de abertura política do Brasil reverbera hoje nos movimentos pela abolição das diferenças sociais e raciais entre os cidadãos. E elegeu Zé Ninguém como personagem de sua saga de um deserdado doente que se descobre um homem durante a pandemia.
“Tenho a impressão de que a origem dessas aulas da Igreja foi a ópera-rock do The Who, Tommy (composta em 1969 por Pete Townshend e filmada em 1975 por Ken Russell).” Nesse conjunto didático de lições dos padres a Zé Ninguém entra até uma animação que justifica essa analogia com o filme de Russell, sobre um garoto cego, surdo e mudo que se torna uma espécie de Messias, conduzindo uma multidão à iluminação – ou ao reconhecimento da própria individualidade, no caso de Zé Ninguém.
“Nesse ato histórico está a abertura política do Brasil nos anos 1980”, observa a curadora da mostra, Ana Maria Maia, que aponta ainda outro trabalho político selecionado para a exposição, Atentado ao Poder, série que reúne retratos de jornais sensacionalistas cariocas publicados em 1992, durante a Eco-92, conferência tida como o marco inicial da luta acerca das questões ambientais e que reuniu mais de 100 países. Detalhe: são fotos de corpos de pessoas assassinadas.
No total, a mostra de Rosângela Rennó está dividida em três núcleos: no primeiro foram reunidas fotos do início de carreira e que tratam da privacidade e das políticas de memória. É assim que a série cujo título inspirou o da exposição (Pequena Ecologia da Imagem) traz fotos de família registradas, entre outros, pelo pai da fotógrafa – e manipuladas pela filha. No segundo núcleo, a observação da cena pública dá origem a séries que prosseguem até hoje, como Arquivo Universal, iniciada em 1992 e constituída por uma coleção de recortes de jornais. No terceiro e último núcleo, a abordagem é ainda mais ambiciosa; o mapeamento do colonialismo a partir da invenção da água de Colônia na cidade alemã que lhe dá o nome – na instalação Eaux de Colonies ela investiga as falsificações e apropriações do perfume pelas colônias no mundo, debatendo, entre outras questões, as pautas identitárias, segundo a curadora.
Outra série inédita, deste ano, Seres Notáveis do Mundo traz um apanhado de biotipos das colônias por meio de bustos fixados em papel marmorizado e que surgem como espectros ibsenianos a assustar a consciência dos colonizadores.
Do primeiro núcleo, Rosângela Rennó se detém diante da obra Gonzaga, da série Corpo da Alma (2003), dedicada à memória do brasileiro Jean-Charles de Menezes (1978-2005) morto pela polícia inglesa, lembrando que Gonzaga é sua cidade natal. A morte marca presença em outras duas fotos da sala 1: os túmulos de dois pioneiros da fotografia, os franceses Hyppolite Bayard (1801-1887) e Hercule Florence (1804-1879).
Na segunda sala chama a atenção a série Vermelha (Militares), cujas imagens, de longe, parecem pinturas de Rothko, mas que, de perto, revelam fotos antigas de civis vestidos em roupas militares. Nessas fotos de Rosângela Rennó, a forma está no limiar do desaparecimento, como as esqueléticas esculturas de Giacometti, em que os personagens vão perdendo sua humanidade. Ficam só os vestígios de uma experiência existencial. Em outras séries, que partem de material de outros fotógrafos, como Private Collection (1995), Rosângela assume que, como boa observadora de fotos alheias, seu trabalho “é interpretar a imagem como se ela fosse minha”. Metalinguagem a serviço da memória do sujeito, em outras palavras.
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