Estátuas de Michelangelo são limpas com bactérias que comem sujeira

A Capela Médici, em Florença, operava em horários reduzidos por causa da covid-19 e cientistas e restauradores realizaram um experimento secreto: colocaram bactérias que se alimentam de sujeiras nas obras em mármore do artista

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Por Jason Horowitz
Atualização:

FLORENÇA, ITÁLIA - Em 1595, descrições de manchas e descoloração começaram a aparecer em relatos sobre um sarcófago na bela capela que Michelangelo criou para ser o último local de descanso dos membros da família Médici. Nos séculos que se seguiram, gesso usado para a confecção incessante de cópias das obras-primas que ele esculpiu no topo dos túmulos deixou resíduos que as desbotaram. As paredes brancas decoradas escureceram.

A Nova Sacristia brilha após um longo período de restaurações na Capela Médici em Florença, Itália. Uma equipe de cientistas, restauradores e historiadores implantou bactérias para limpar a Capela Médici, adornada com as esculturas do 'Crepúsculo' e do 'Amanhecer' de Michelangelo. Foto: Gianni Cipriano / The New York Times

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Quase uma década de restauração conseguiu remover a maior parte das manchas no túmulo e outras mais resistentes exigiram uma atenção especial. Nos meses anteriores à epidemia de covid-19 e depois nos dias mais sombrios da segunda onda, quando o vírus se propagou fortemente, restauradores e cientistas em segredo espalharam micróbios com gosto e um enorme apetite por mármores, intencionalmente transformando a capela num bufê bacteriano.

“Foi um experimento totalmente secreto”, disse Daniela Manna, um dos restauradores.

Numa manhã recente - com as esculturas alegóricas do anoitecer e do amanhecer acima dela, Daniela se reclinou e chegou até um esconderijo escuro entre a parede da capela e os sarcófagos para apontar para uma área escura de sujeira, um resíduo mostrando o quão imundo o mármore havia ficado.

Ela atribuiu a sujeira a um Médici em particular, Alessandro, governador de Florença, cujo corpo assassinado aparentemente foi enterrado na tumba sem ser eviscerado adequadamente. No decorrer dos séculos, os restos se infiltraram no mármore de Michelangelo, criando manchas profundas, deformações em forma de botão, e mais recentemente oferecendo um festim para o produto de limpeza preferido da capela, uma bactéria chamada Serratia ficaria SH7.

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“A SH7 comeu Alessandro”, disse Monica Bietti, ex-diretora do Museu da Capela Médici, de pé diante do túmulo agora brilhando, cercado por obras de Michelangelo, outros membros da família Médici em torno, turistas e uma equipe composta só de mulheres com cientistas, restauradoras e historiadoras. Sua equipe usou a bactéria que se alimentou da cola, óleo e aparentemente dos fosfatos de Alessandro agindo como uma arma biológica contra séculos de manchas.

A partir da esquerda: Donata Magrini, Anna Rosa Sprocati, Daniela Manna, Paola D'Agostino, Monica Bietti e Marina Vincenti na Capela Médici em Florençaa, Itália. A equipe de cientistas, restauradores e historiadores implantou bactérias para limpar a Capela Médici. Foto: Gianni Cipriano / The New York Times

Em novembro de 2019 o museu incluiu o National Resarch Council da Itália no trabalho, que utilizou espectroscópio infravermelho revelando a existência de calcita, silicato e outros resíduos mais orgânicos nas esculturas e em dois túmulos de frente um para o outro na Nova Sacristia.

Isto serviu de modelo para Anna Rosa Sprocati, bióloga da Italian National Agency for New Techonologies, selecionar a bactéria mais apropriada de uma coleção de quase mil cepas, usada normalmente para decompor o petróleo quando há derramamento de óleo e petróleo ou reduzir a toxicidade de metais pesados. Alguns dos organismos no seu laboratório ingeriram fosfatos e proteínas, mas também o mármore de Carrara, preferido por Michelangelo.

“Não escolhemos esses”, disse Bietti.

Então a equipe de restauração testou as oito cepas mais promissoras atrás do altar, numa pequena palete retangular com fileiras de quadrados como uma cartela de bingo de mármore. Todas eram não-perigosas e sem esporos.

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“É melhor para nossa saúde”, disse Manna, depois de deixar o sarcófago. “Para o meio-ambiente e para as obras de arte”.

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Sprocatti disse que primeiramente a bactéria foi introduzida no túmulo de Giuliano de Lorenzo, duque de Nemours. Esse sarcófago é adornado com esculturas alegóricas do Dia, uma figura masculina retorcida, e a Noite, um corpo feminino que Michelangelo criou tão fluido e polido como sebrilhasse ao luar. A equipe lavou os cabelos dela com Pseudomonas stutzeri CONC 11, uma bactéria isolada da sujeira de um curtume perto de Nápoles, e limpou os resíduos de moldes de fundição, cola e olho dos seus cabelos com Rhodococcus sp.ZCONT, que resulta do solo contaminado com diesel em Caserta.

Foi um sucesso. Mas Paola D’Agostino, que dirige os Museus Bargello e supervisiona as capelas e que revelou oficialmente os resultados do projeto em junho, preferiu não arriscar no caso do rosto da Noite. Bietti e Pietro Zander, especialista do Vaticano e membro da equipe, também foram no mesmo caminho. Permitiram que os restauradores dessem à escultura feminina um banho de goma xantana, um estabilizador encontrado em dentifrícios e cosméticos e é derivado de uma bactéria chamada Xanthomonas campestris. O busto do Duque Giuliano, sobre o seu túmulo, recebeu tratamento similar.

Em fevereiro de 2020, com a covid-19, o museu foi fechado e o processo foi interrompido.

Monica Bietti, uma ex-diretora do Museu das Capelas dos Médici, que trabalhou para limpar e restaurar a capela, aponta para a escultura alegórica de Michelangelo da 'Noite' na Capela dos Médici em Florença, Itália. Foto: Gianni Cipriano / The New York Times

Sprocatti levou os micróbios para outros lugares. Em agosto seu grupo de biólogos usou bactérias isoladas de um sítio industrial em Nápoles para limpar a cera deixada por séculos de velas acesas em oferenda, em uma obra-prima de Alessandro Algardi, um colossal relevo de mármore na Basílica de São Pedro em Roma, retratando o encontro de Átila e o Papa Leão.

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As cepas bacterianas retornaram à Capela Médici - que foi reaberta com horas de visitas reduzidas - em meados de outubro. Usando jalecos brancos de laboratório, luvas azuis e máscaras cirúrgicas anti-covid, Sprocatti e os restauradores espalharam gel com a bactéria SH7 - do solo contaminado por metais pesados num sítio de minérios na Sardenha - no sarcófago de Lorenzo di Piero, Duque de Urbino, enterrado com seu filho assassinado, Alessandro.

Em 2016, Vincenti participou de uma conferência realizada por Sprocati e seus biólogos (Introdução ao mundo dos microrganismos). Eles mostraram como as bactérias haviam limpado resíduos de resina em afrescos barrocos na Galeria Carracci, no Palácio Farnese em Roma. Cepas isoladas de águas drenadas de minas na Sardenha eliminaram manchas de ferro corrosivas nos mármores de Carrara da galeria.

Quando chegou o momento de limpar as obras de Michelangelo, a bióloga Marina Vincenti insistiu na ajuda bacteriana.

“Eu disse OK”, comentou D’Agostino. “Mas primeiro vamos fazer um teste.

As bactérias passaram no exame e realizaram seu trabalho. Na segunda-feira, turistas admiravam a figura inclinada e pensativa do Anoitecer, o surgimento do Amanhecer e a tumba de Lorenzo, agora liberta dos restos de Alessandro.

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“É muito estranho, especialmente nestes tempos de covid”, disse Marika Tapuska, eslovaca em visita a Florença com sua família. Quando soube que bactérias limparam o sarcófago. “Mas se funciona, por que não?”

Tradução de Terezinha Martino

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