Num salão do Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana do Instituto Smithsoniano, pode-se ver o Painel nº 1 das 60 pinturas de Jacob Lawrence da série Migração. Instalada como parte da exposição Defendendo a Liberdade, Definindo a Liberdade, a pintura mostra a migração para o norte de milhões de afro-americanos depois da 1.ª Guerra Mundial – uma multidão de figuras abstratas em verde e negro rumando para Chicago, Nova York e Saint Louis e lotando uma estação de trem.
É difícil imaginar um lugar mais apropriado para se ver essa obra. No entanto, o Lawrence do museu não é verdadeiro, mas uma fotografia do original. A pintura real está na Phillips Collection, dona dos painéis de numeração ímpar da série (os de números pares pertencem ao Museu de Arte Moderna de Nova York). A única pista de que se trata de uma cópia é uma referência no cartão próximo a ela, no qual se lê: “Lawrence Jacob (1917-2000) / The Phillips Collection, Washington, D.C., USA / Adquirido em 1942 / Bridgeman Images”. Bridgeman é uma empresa que tem o direito de reproduzir obras – mas, se você não souber disso, pode não perceber que está vendo uma cópia. Um porta-voz do Museu Afro-Americano não quis comentar os termos vagos descrevendo a cópia do Painel nº 1. Já uma porta-voz da Phillips Collection disse que o museu particular do Dupont Circle, D.C., tem conhecimento da cópia exibida no museu Afro-Americano, mas não comentaria a forma como está sendo apresentada.
Existem, porém, curadores e funcionários de museus que consideram que a ideia de se exibir cópias sem uma clara admissão do fato vai contra a função educacional dos museus. Graham Beal, que se aposentou em 2015 após 16 anos como diretor do Instituto de Artes de Detroit, disse que a instituição exibe reproduções ao lado de obras originais, mas não as emoldura (como o museu Afro-Americano fez com a cópia de Lawrence) e as apresenta claramente como reproduções. “Nunca soube nem ouvi falar de um museu recorrendo a tal subterfúgio”, disse ele. “A coisa que os museus mais devem prezar é a autenticidade. Museus deveriam ser o oposto de fake news.”
Gary Vikan, que dirigiu por quase 20 anos o Walters Art Museum, de Baltimore, preocupa-se com a possibilidade de um turista, vendo uma cópia de uma grande obra, “embarque no avião levando consigo uma imagem que não é verdadeira”, embora não por culpa sua. “Somos enganados na internet. Somos enganados pela Casa Branca. Será que estamos nos sentindo mais confortáveis com a mentira?”, pergunta ele.
Mesmo funcionários antigos e atuais do Smithsonian ficaram surpresos ao saber de cópias não identificadas como tal. “Eu ficaria surpreso se isso acontecesse”, disse Peter Liebhold, curador da divisão de indústria e trabalho do Museu Nacional de História Americana. Steven Lubar, ex-coordenador da divisão de tecnologia do Museu de História Americana e atualmente professor da Universidade Brown, disse que a cópia de Lawrence deveria ser claramente etiquetada como tal. “Se você apresenta algo como o original e põe em moldura, precisa informar isso”, afirmou.
A vaga descrição do painel de Lawrence poderia facilmente passar em branco se essa não fosse apenas uma de centenas de cópias de obras de arte, objetos e espécimes em exibição em reputadas instituições culturais de toda Washington. Museus, é claro, têm razões práticas para exibir, digamos, um esqueleto de dinossauro composto de ossos reais e falsos em lugar do fóssil completo, ou mostrar um modelo de cápsula espacial em vez da que orbitou em torno da Terra. Mas o papel das cópias levanta muitas dúvidas sobre a missão dos museus e a natureza da autenticidade, dúvidas como: “faz diferença se as obras de arte ou os objetos históricos em exibição são cópias? Isso diminui a importância das experiências dos visitantes? As instituições que não identificam claramente as cópias estão fugindo de sua responsabilidade com o público?”.
O Lawrence do Museu Afro-Americano ficou óbvio para mim quando eu estava numa coletiva de imprensa poucos meses antes de sua exibição para o público. Eu já havia visto dezenas de vezes o original na Phillips. Quando voltei ao museu, pouco menos de um ano depois, fiquei surpreso ao ver que a cópia continuava lá, com o mesmo cartão vago. Decidi então procurar outros exemplos de arte e artefatos falsos que são facilmente tomados pelos originais.
Num dia chuvoso de outubro, dei início à minha peculiar caçada, começando pelo Museu Nacional do Índio Americano e avançando pelo National Mall durante uma semana e meia. Levei em torno de duas horas em cada parada (o Museu Nacional de História Natural, onde só de minerais há 2.500 objetos, levou cinco horas). Quando terminei com o Mall, fui para o Museu Smithsonian de Arte Americana e para a National Portrait Gallery, depois para a Phillips. Minha última parada foi na Smithsonian’s Renwick Gallery. No total, visitei 12 museus Smithsonians, a National Gallery e a Phillips, esmiuçando os rótulos de vários milhares de obras de arte e artefatos.
Descobri que muitos dos objetos que cativaram dezenas de milhões de visitantes anuais não eram autênticos, ou pelo menos não do modo que os visitantes acreditavam. Para deixar claro, objetos não autênticos representam uma pequena porcentagem dos imensos acervos do Smithsonian e da National Gallery, e a esmagadora maioria de cópias é classificada como não autêntica. Entretanto, curadores e dirigentes de museus admitem prontamente que os visitantes não leem muitas das etiquetas. E, quando eventualmente chegam às letras pequenas, cabe-lhes o ônus de analisar os variados e frequentemente confusos termos usados.
No Hirshhorn Sculpture Garden, os visitantes podem vagar apreciando as esculturas de Rodin Os Burgueses de Calais, Monumento a Balzac, A Mulher de Cócoras e L’Home qui Marche. Mas, a menos que as pessoas levem algum tempo examinando os rótulos, não deduziriam que Rodin, morto em 1917, não poderia nunca ter tocado essas escultura específicas, fundidas entre 1953 e 1966. Um rótulo, por exemplo, diz: “Auguste Rodin, francês, nascido em Paris, 1840-1917, A Mulher de Cócoras, 1880-82, ampliada em 1907, fundida em bronze em 1962. Doação de Joseph H. Hirshhorn, 1966”.
O mesmo é verdade para uma das duas esculturas A Pequena Bailarina de 14 Anos, da National Gallery of Art, atribuídas a Edgar Degas. Uma das duas pequenas bailarinas (em cera) existentes na National Gallery é a única que Degas tocou; a outra, em gesso, foi feita postumamente. Herdeiros de Degas autorizaram a reprodução de algumas de suas esculturas – originalmente em materiais perecíveis como cera e massa de modelagem –, embora o próprio Degas não autorizasse ninguém a fazer isso após sua morte. As bailarinas estão entre 60 esculturas de Degas existentes no museu.
O rótulo da Pequena Bailarina de gesso assinala que Degas viveu de 1834 a 1917 e que a reprodução foi feita possivelmente em 1920 ou 1921. É razoável deduzir que muitos turistas nunca juntaram essas informações – uma porta-voz do museu disse que herdeiros de Degas autorizaram a fundição póstuma em bronze para preservar e exibir “um aspecto crucial da criatividade de Degas” que, de outro modo, estaria em risco de se desintegrar dada a fragilidade do material da escultura – e que a reprodução póstuma em gesso foi feita antes de a escultura original ir para restauração, e isso permite aos visitantes comparar as duas.
O Hirshhorm foi um dos primeiros museus do mundo a pôr nos rótulos as datas de fundições e reproduções, disse-me a ex-curadora Valeri Fletcher. Nas instituições que percorri, os visitantes precisariam às vezes ler a mente dos curadores para saber se certas obras são mesmo as originais. Nos rótulos e textos de parede de museus, curadores usam amplamente uma terminologia inconsistente. Alguns termos – como “réplica”, “cópia”, “reconstrução”, “fac-símile”, “reprodução” e “modelo em escala” são geralmente compreensíveis. Mas outros são mais esotéricos, como “restauração conjectural”, “artigo para teste de prova” e “modelo para teste de engenharia”. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.