Exposição mostra o sagrado e o profano

'Terra e Temperatura', até o dia 14 na Galeria Almeida e Dale, reúne 33 nomes como Maria Martins, Mira Schendel, Mestre Didi, Tunga e Anna Maria Maiolino

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Foto do author Antonio Gonçalves Filho

Uma grata surpresa a exposição Terra e Temperatura, que a Galeria Almeida e Dale mantém aberta até o dia 14 deste mês. Concebida por um jovem curador, Germano Dushá, de 32 anos, a mostra cumpre o desafio de reunir num mesmo espaço mais de 80 obras de 33 artistas de diferentes gerações em torno de temas como religiosidade, identidade, transmutação e pertencimento. O primeiro tema foi até mesmo responsável pela escolha do sobrenome do organizador da exposição: a palavra russa ‘dushá’, recorrente na grande literatura russa (Dostoievski, Tolstoi), é equivalente à alma.

Na exposição há exemplos de artistas cuja formação foi marcada por crenças que inspiraram suas obras, seja o escultor e sacerdote baiano Mestre Didi (1917-2013), iniciado no culto aos ancestrais da tradição iorubá, ou escultores anônimos que professaram sua fé ao deixar registradas na madeira suas impressões de um mundo em transição, em que natural e sobrenatural se cruzam por meio da matéria. Dushá parece particularmente interessado em pesquisar como formas e cores se encontram no que define como uma “jornada não linear”. 

O curador Germano Dusháe a tela 'Manacá' (1927) de Tarsila Foto: HELCIO NAGAMINE/ESTADAO

Em certo sentido, o curador evoca a fenomenologia do filósofo francês Michel Henry (1922-2002), para quem a arte seria uma espécie de “ressonância interior, livre da figura de um objeto em particular”. Para Dushá e Henry, o lugar da evolução estética é a vida invisível, como defendiam Kandinsky e Paul Klee. Isso justifica a colocação de uma tela matérica dos anos 1960, da artista suíça, naturalizada brasileira, Mira Schendel (1919-1988) ao lado de um óleo do paulista José Antonio da Silva (1909-1996). Ou de um esboço da escultora surrealista mineira Maria Martins (1894-1973) ao lado de uma obra do escultor pernambucano Tunga (1952-2016).

Escultura da série 'Morfológicas' de Tunga Foto: HELCIO NAGAMINE/ESTADAO

Uma chave para entrar no universo de Mira é a fenomenologia (em especial a do alemão Hermann Schmitz), mas sem desconsiderar a sua religiosidade (traduzida de modo enfático na pintura escritural de Mira). O uso do termo corporeidade é igualmente apropriado para definir a paisagem de José Antonio da Silva em que agricultores surgem no primeiro plano de uma plantação de algodão. À primeira vista é apenas uma reminiscência da vida rural do pintor na região Noroeste (São José do Rio Preto) onde passou sua juventude. Mas os espaços amplos do algodoal sugerem mais: em suma, uma passagem do corpóreo para o campo espiritual, como em Mira.

Paisagem com algodoal (1981), tela de José Antonio da Silva Foto: HELCIO NAGAMINE/ESTADAO

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Dushá vai além. Diz que colocou o esboço da escultura Uirapuru (bronze de 1945), de Maria Martins, ao lado da escultura morfológica (s/t, 2014) de Tunga porque ambos tratam em suas obras da metamorfose dos corpos – no caso de Maria Martins, seu Uirapuru é um índio que pede a Tupã para ser transformado em pássaro e seduzir a mulher do cacique. A escultura de Tunga, também fabular, opta por um modelo híbrido entre vegetal e animal, uma quimera.

Para traçar tais relações, Dushá fez da expografia de Terra e Temperatura um exercício formal que reorganizou o espaço da galeria. Ocupa o lugar central, claro, uma rara tela da modernista Tarsila do Amaral, Manacá (1927), que transforma o arbusto brasileiro num fetiche antropofágico para exorcizar Léger. Em outra sala, um cetro de força mística (1980) de Mestre Didi domina o ambiente povoado por uma tela gigantesca de Thiago Martins de Melo, Caim (2019), sobre o caráter violento da polícia e o espírito caimita brasileiro. Ao lado, esculturas de Conceição dos Bugres (dos anos 1970) dialogam com criaturas de Agnaldo Santos (dos anos 1950) e entidades de Chico Tabibuia (entre elas o Exu Pilão dos anos 1980), além de um bordado/pintura de Madalena dos Santos Reinbolt.

Como se vê, não há na mostra hierarquia entre a “grande arte” e a popular – palavra que Dushá expurgou do seu dicionário Um totem de Ione Saldanha ou de Niobe Xandó convivem com ex-votos de anônimos. Duas peças de cimento de Anna Maria Maiolino (da série A Sombra do Outro) reverberam a fenomenologia de Mira Schendel na mesma sala (o cheio e o vazio num mundo em estado puro). Ao estabelecer tais relações, diz Dushá, Terra e Temperatura cria um ecossistema que aprofunda seu método de aproximação. São artistas que transformam o verbo em imagem, mantendo sua individualidade. “É a partir do que é único que se revela o universal”, observa o curador, afirmando sua crença de que a arte brasileira dispensa rótulos ou certificado de origem para sobreviver.

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A exposição vem acompanhada de um livro com todas as obras reproduzidas e informações sobre os documentários que estão sendo exibidos (online no site da galeria) sobre os artistas representados ou os cenários reais por onde circularam. Entre os títulos selecionados por Dushá estão Viramundo (1965), de Geraldo Sarno, Os Romeiros de Padre Cícero (1994), de Eduardo Coutinho, além de curtas sobre Chico Tabibuia e Castiel Vitorino Brasileiro.

Serviço

TERRA E TEMPERATURA.GALERIA ALMEIDA E DALE. RUA CACONDE, 152, JARDINS, TEL. 3882 7120). 2ª/6ª, 10H/18H. SÁB., 10H/16H (ENTRADA ATÉ ÀS 15H). AGENDAMENTO POR E-MAIL (RECEPCAO@ALMEIDAEDALE.COM.BR

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