Concebida pouco antes da morte do artista pernambucano Tunga, aos 64 anos, em junho deste ano, a exposição Pálpebras ocupa simultaneamente os dois espaços da Galeria Millan, a sede original e o anexo, com obras de diferentes períodos, mas ligadas entre si – aliás, como tudo o que fez o escultor. Na sede original estão trabalhos do conjunto Phanógraphos, que representam pequenas variações da série Cooking Crystals (2010) – frascos de laboratório contendo um líquido âmbar como urina, presos com ímãs a estruturas metálicas. No segundo andar, desenhos de Tunga dialogam com obras de outros artistas, entre eles Arthur Barrio, Miguel Rio Branco, Paulo Pasta e Thiago Rocha Pita, que foi seu assistente .
No anexo está exposta a série Morfológicas, esculturas que, como sugere o título, representam corpos em fragmentos, inspirados no processo alquímico e animados pela promessa de transcendência. Como se sabe, dois anos antes de morrer, Tunga exibiu esculturas da série From La Voie Humide, que buscavam nos textos herméticos dos antigos alquimistas uma chave para transformar a matéria – na “voie humide’, ou via úmida, o orvalho, misturado ao enxofre (princípio ativo, masculino) e ao mercúrio (princípio feminino), constituem o preâmbulo da vida.
Logo na entrada do anexo, uma monumental escultura que representa essa conjunção cósmica, A Seus Pés, de sete metros de altura, mostra essa matéria finalmente amalgamada com sua essência imaterial. Dedos gigantescos, que apontam para diferentes direções, encontram em vagens pantagruélicas sua correspondência morfológica – e sexual. Um dos dedos sustenta um ventre fertilizado, indicando que o elemento viril finalmente está pronto para a concepção. Não é tão simples assim, mas, evocando Plotino, seria a emergência de um novo ser, o que transfere à peça um anúncio de renascimento – feito pelo próprio artista em sua despedida, no ocaso de sua existência.
É possível identificar nessa e outras peças da mostra uma ligação com a tradição surrealista – traços de Hans Arp e Louise Bourgeois são imediatamente reconhecíveis. Contudo, o que chama a atenção nessa exposição póstuma não é exatamente esse parentesco. Surpreende mesmo a atenção dispensada por Tunga à tradição greco-romana como o maior legado da modernidade, no sentido do que a fragmentação da escultura clássica despertou em modernos como Rodin e contemporâneos como Arp. Ela se traduz no gosto por torsos e outros pedaços do corpo, exigindo do espectador o movimento voluntário das pálpebras para concluir a figura, no limite da abstração.
A peça A Seus Pés, assim como outras esculturas da exposição, não chegou a ser fundida em versão final (bronze). O que o público vê é a prova do artista, guardada no ateliê de Tunga, o Laboratório Agnut (o nome do artista de trás para a frente), no Rio. Seu assistente, Fernando Sant’Anna, que trabalhou com ele por 15 anos, fala da incompletude desse grupo de peças como um motivo a mais para montar a exposição não como retrospectiva, mas como um evento transitório, que reconstitui ligeiramente o último posto de trabalho de Tunga, antes que um traiçoeiro câncer na garganta o levasse.
Sant’Anna, que começou sua vida profissional construindo marionetes, era constantemente desafiado por Tunga a executar objetos insólitos, entre eles um livro de borracha – um dos últimos criados por ele. Na mostra, há uma obra que usa o material e integra o universo de sua mitologia pessoal – uma peça dentada que recorre ao método tradicional da escultura em bronze, deixando seu negativo (ou molde) à mostra. Como alquimista, Tunga, seduzido por formas herméticas, experimentou os mais diversos materiais (chumbo, cristais, ímãs, aço, cobre), sempre atento ao seu sentido simbólico, valendo-se de uma narrativa que não dispensou referências literárias. Neobarroco ou surrealista, pouco importa o rótulo. O que importa, de fato, é o conteúdo. Com Pálpebras, Tunga conquista o posto do mais importante artista contemporâneo brasileiro. Dificilmente será superado.
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