NOVA YORK - Foram as piores críticas que Bjork já recebeu em sua carreira, e não por algum CD novo, ou canção. Sua retrospectiva no MoMa provocou a ira dos críticos. É fácil dizer que não entenderam nada do aparente show exibicionista da compositora/cantora/atriz/performer. Bjork debruça-se sobre seus sete primeiros álbuns. O som, a música, está presente ao longo de todo o evento, que ocupa o terceiro andar do Museu de Arte Moderna de Nova York. É bom comprar os ingressos com antecedência para evitar as filas. Mesmo assim, alguma espera é sempre inevitável. Por razões de segurança, rigorosamente controladas, apenas um certo número de espectadores pode percorrer as salas de cada vez. Bjork apresentou no Carnegie Hall o show de lançamento do novo álbum, Vulnicura. Foram seis canções. Dessa vez os críticos foram mais generosos, mesmo que alguns admitam que ainda estão processando Vulnicura. Só como curiosidade, vale destacar que o novo CD de Madonna, Rebel Heart, está sendo considerado o melhor da artista em anos. Depois de um longo período trilhando caminhos conhecidos, de músicas dançantes, Madonna volta a expressar em versos a rebeldia de seu coração selvagem. Bjork faz outra coisa. No universo pop, a islandesa faz uma música conceitual bem de acordo com o espírito do tempo. Não foi por outro motivo que virou um fenômeno mundial. Bjork pode ser, eventualmente, emocional on stage. Mas ela pensa sua música, e as executa com fria inteligência, no mesmo sentido que Stanley Kubrick era/é frio.
Talvez seja esse o futuro da arte, que já chegou. No cinema e na música, certos artistas (Bjork, Peter Jackson, Christopher Nolan) somam cultura erudita e pop, e se utilizam de todas as ferramentas que as novas tecnologias colocam à disposição. Once Upon a Time/Era Uma Vez... É o (novo?) conceito de Bjork. Os velhos relatos orais, de fadas mas não apenas. Quem acompanha a artista sabe que, desde o primeiro álbum, no começo dos anos 1990, cada criação de Bjork é sempre uma viagem. Ela cria uma personas, uma personagem para cada disco. Veste-a com cenários, figurinos e sonoridades,. colaborando com artistas (de vanguarda?). A retrospectiva é uma viagem pelos sete primeiros álbuns de Bjork. Era uma vez umas garota que sonhou... O quê?? Viajar o mundo, conquistar galáxias? Apropriar-se de culturas ancestrais para com elas iluminar o presente e apontar o futuro? Cada parada dessa que não chega a ser uma via--crúcis pessoal descoretina as origens do processo de Bjork. Em islandês e em inglês, estão documentadas, de seu punho, as letras das canções, a base da poesia. Em cada uma delas, bonecas/manequins em tamanho natural reproduzem a Bjork da vez, com suas roupas muitas vezes (quase sempre) exóticas. Lá estás o vestido de cisne que ela usou no Oscar, quando foi indicada pelo Lars Von Trier, Dançando no Escuro, em 2001. É interessante olhar as bonecas, circundá-las, olhar em seus olhos que não expressam nada. Por que as estátuas não têm olhos, perguntava a Cleópatra de Joseph L. Mankiewicz? A 'alma' de Bjork o espectador, transformado em ouvinte, capta pelos fones de ouvido que tem de usar desde o começo da exibição. Vem da sua voz que, na penumbra daqueles ambientes, ilumina e dá novo sentido aos materiais usados na exibihition, a palavra inglesa para exposição. E, em cada etapa, na passagem de um ambiente - um ´salbum, uma personagem - para outro, há sempre projetado na gigantesca parede interna do MoMa o clipe de Bjork na 5. Avenida. Ela avança em meio aos carros, não metamorfoseada em suas personas, mas na persona Bjork, que criou para sonhar, e nos fazer sonhar com ela.
Cereja do bolo, no fim da exposição, é preciso entrar em outra fila, que dá acesso à 'caverna'. Um clipe especialmente comissionado para o evento do MoMa. Black Lake. Esse lago escuro pode ser o coração humano, porque Bjork, na música, fala de amor sem banalidade. Filmado naquele território vulcânico, de terra escura, que Ridley Scott transformou em mundo paralelo em Prometeus, ela avança ritualística, de pés descalços, dramatizando cada gesto, cada inflexão de voz, como a atriz que pode e sabe ser. Talvez seja esse o mistério. A retrospectiva compõe-se de signos exteriores para chegar ao interior da menina que sonhou. Não é uma viagem fácil. Exige reciprocidade. O mais curioso é essa dualidade. Bjork escreve sua poesia, suas anotações em islandês e inglês. No mundo globalizado, ela faz o movimento de Tol.stoi. Fala de si, de sua aldeia, para se comunicar com o mundo. O idioma é universal, a paisagem é local - da Islândia e de Nova York. Como complementos desse evento, o MoMa propõe outros dois eventos, em diferentes andares do prédio. Lá está, permanente, o acervo da casa, mas essas outras exposições são complementares à retrospectiva de Bjork. A viagem interna da artista dialoga com a Paris dos tipos de Toulouse-Lautrec, uma exposição que, por si só, valeria a ida ao MoMa. Todas aquelas figuras míticas, todos aqueles lugares da Parisa fantasmagórica e sonhada de TL. A outra exposição diz respeito à arquitetura e, se TL faz a ponte entre passado en presente, essa faz entre presente e futuro, como o evento Bjork expande-se por toda uma linha de tempo. Propostas para a cidade do futuro, a partir de estudos de casos do Rio, de Nova York e de Lagos, na Nigéria. As estatísticas não mentem. Você sabia que, em Nova York, mais de 20% da população vivem em condições de extrema pobreza, muito abaixo do limite traçado pelas Nações Unidas e que você imagina encontrar na África e na América Latina, não na gloriosa e sofisticada 'América'. Mais de 5% são crianças subnutridas cujo futuro está irrevogavelmente traçado, e é sombrio. O sonho de Bjork não é para salvar as criancinhas do mundo - bem, talvez seja. É para nos fazer compreender quem somos, quem ela é. Em que mundo vivemos, e que mundo desejamos. Pity para quem não entendeu, ou não quis entender.
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