Análise | História da mais antiga comunidade judaica no Brasil, a da Amazônia, é resgatada em exposição em SP

Primeiros imigrantes judeus vieram do Marrocos no início do século 19. Hoje limitado às cidades de Manaus, Belém e Macapá, o judaísmo amazônico mantém tradições herdadas de seus ancestrais

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Por Luis S. Krausz

Mais antiga do que as de São Paulo ou do Rio de Janeiro, a comunidade judaica da Amazônia tem sua história ainda relativamente pouco conhecida revisitada numa exposição no Museu Judaico de São Paulo que fica em cartaz até maio.

Hoje limitada às cidades de Belém, Manaus e Macapá, a comunidade judaica amazônica floresceu a partir de 1810, com a chegada dos primeiros imigrantes judeus vindos do Marrocos em busca de oportunidades de comércio, em decorrência da abertura dos portos do Brasil Colônia às nações amigas.

Os primeiros imigrantes judeus marroquinos eram, sobretudo, homens solteiros, que passaram a se estabelecer em localidades ribeirinhas. Normalmente vinham sozinhos, muitas vezes chamavam seus familiares mais tarde, quando já tinham conseguido se estabelecer, ou se casavam com mulheres amazonenses. Em lugares como Maués, Itacoatiara, Alenquer, Óbidos, Cametá, Santarém e Itaituba, ainda hoje se encontram antigos cemitérios judaicos, muitos deles abandonados, cujas sepulturas testemunham a antiga presença judaica na região.

Família Levy em Maués (AM ) - Fotografia da série 'Hebraicos da Amazônia, de 1981, presente na exposição 'Judeus na Amazônia' do Museu Judaico. Foto: Sergio Zalis via Museu Judaico de São Paulo

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O historiador manauara Samuel Benchimol (1923-2002) estima, em seu livro Eretz Amazônia, que cerca de 1.000 famílias judias emigraram do Marrocos para a Amazônia, sobretudo ao longo do século 19 e no início do século 20. Ali muitos encontraram o que ele chamou de “Nova Terra da Promissão” pois, ao contrário do que se passava no Marrocos, onde a lei religiosa islâmica impunha aos judeus a condição de seres humanos de categoria inferior, “a Amazônia foi concebida como a Terra da Promissão, uma pátria livre para seus correligionários”, nas palavras da escritora Sultana Levy Rosenblatt (1910-2007).

O ciclo da borracha significou, também, o apogeu desta onda migratória: a prosperidade rapidamente se espalhou ao longo da calha do Rio Amazonas e de seus afluentes e trouxe consigo a demanda por mercadorias de luxo, de origem europeia tanto quanto oriental: tecidos, porcelanas, cristais, tapeçarias, mobiliário e até pianos. E os judeus de origem marroquina desempenharam um papel importante no comércio fluvial, tanto como importadores destas mercadorias quanto como exportadores das chamadas “drogas do sertão”, usadas pela indústria farmacêutica e de perfumaria na Europa.

Na década de 1910 o jornalista José Benedicto Cohen chegou a descrever as cidadezinhas de Itacoatiara e Parintins “como pedaços da Canaã, no centro do Amazonas”, e a dizer, da comunidade judaica do Pará, que “por sua fortuna, inteligência, e finíssima qualidade, faz parte integrante da mais alta camada social daquele Estado”.

O rápido declínio do ciclo da borracha no início do século 20, porém, desencadeou um êxodo destas localidades ribeirinhas em direção a Manaus, Belém e Macapá e, posteriormente, ao Rio de Janeiro. A maior parte dos judeus marroquinos e de seus descendentes que não emigraram para as grandes cidades, permanecendo isolados em comunidades que se desintegravam, acabaram por ver seus descendentes assimilados à população majoritária local e à perda da identidade judaica.

Turma de Hebraico na Sinagoga de Belém - Fotografia da série 'Hebraicos da Amazônia', de 1981. Coleção MAR - Museu de Arte do Rio / Secretaria Municipal de Cultura da cidade do Rio de Janeiro / Fundo Lea e Israel Klabin. Foto: Sergio Zalis via Museu Judaico de São Paulo/Divulgação

Assim, encontram-se ainda hoje, no interior da Amazônia, milhares de descendentes destes judeus marroquinos que abandonaram a religião e os costumes dos seus ancestrais, mas que ainda conservam nomes e sobrenomes judaico-marroquinos. Um exemplo é o cantor David Assayag, celebridade da Festa do Boi de Parintins, integrante do Grupo Folclórico Boi Bumbá Garantido e uma das figuras mais conhecidas da cultura popular amazônica.

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A exposição no Museu Judaico de São Paulo aborda a longa história do judaísmo amazônico por meio de objetos de uso quotidiano, fotografias, vídeos, áudios, documentos e mapas. São retratadas as trajetórias de várias figuras de destaque de diferentes localidades, desde a modelo Janete Serruya, Miss Amazonas em 1979, até o Rabi Shalom Emanuel Muyal, que faleceu em Manaus em 1910 e cuja sepultura, no Cemitério Municipal São João Batista, ainda hoje atrai peregrinos de todas as religiões em busca de graças.

O rabino foi sepultado num cemitério católico, assim como 90 outros judeus marroquinos falecidos em Manaus antes da criação do cemitério israelita. Ele estava de passagem pelo Amazonas, vindo do Marrocos, para recolher fundos para a criação de um instituto de ensino e morreu de febre amarela. Sepultado, adquiriu fama de milagroso e, em volta de sua tumba, sempre marcada por oferendas de velas, encontram-se dezenas de placas agradecendo por graças e curas milagrosas, antigas e recentes.

Outra figura destacada é o Major Eliezer Levy (1877-1947), fundador do primeiro jornal judaico da Amazônia, o tabloide Kol Israel (A voz de Israel), em 1918.

Exemplar do primeiro jornal judaico da Amazônia, o tabloide Kol Israel (A voz de Israel), fundado pelo Major Eliezer Levy, em exposição na mostra 'Judeus na Amazônia' do Museu Judaico de São Paulo. Foto: Luis S. Krausz/Estadão

Na arca sagrada da sinagoga de Manaus encontra-se uma relíquia que vem há séculos acompanhando a saga dos judeus marroquinos amazonenses: uma Torá de mais de 400 anos que, segundo se conta, teria sido levada de Portugal para o Marrocos no início do século 16 e do Marrocos para Manaus no segundo êxodo destes judeus de origem ibérica, no século 19.

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Hoje limitado às cidades de Manaus, Belém e Macapá, o judaísmo amazônico mantém tradições herdadas de seus ancestrais, no Marrocos e, antes disto, na Península Ibérica, e ao mesmo tempo as reelabora em função da realidade local. Um bom exemplo disso é sua culinária que, com o passar do tempo, metamorfoseou-se por meio da deglutição de ingredientes locais ou adaptou pratos amazônicos às restrições dietéticas judaicas: o Brasil, desde sempre, incorpora seus imigrantes – e também deixa-se incorporar por eles, como já sabiam Oswald de Andrade e os modernistas.

Judeus na Amazônia

  • Museu Judaico de São Paulo (MUJ) - Rua Martinho Prado, 128 - São Paulo, SP
  • Funcionamento: 3ª a domingo, das 10 horas às 18 horas
  • Ingresso: R$ 20 inteira; R$ 10 meia. Sábados gratuitos
  • Classificação indicativa: Livre
  • Acesso para pessoas com mobilidade reduzida
  • Até 5 de maio
Análise por Luis S. Krausz

Professor livre-docente de Literatura Hebraica e Judaica na Universidade de São Paulo e escritor

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