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Hosseini, das pipas às burcas

Autor de O Caçador de Pipas fala do livro A Cidade do Sol, sobre a opressão da mulher no Afeganistão

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Lançado há pouco mais de duas semanas no Brasil, o segundo livro do médico e escritor afegão Khaled Hosseini, A Cidade do Sol, já chegou ao primeiro lugar na lista dos mais vendidos, repetindo o êxito de seu livro de estréia, O Caçador de Pipas, que vendeu 8 milhões de exemplares em todo o mundo (mais de 1 milhão só no Brasil). Assim como O Caçador de Pipas, cuja versão cinematográfica estréia em novembro nos EUA - e em janeiro, no Brasil -, A Cidade do Sol já teve os direitos vendidos para o cinema e deve estrear em 2009. Hosseini, que concedeu, por telefone, da Califórnia, uma entrevista ao Estado, está, obviamente, muito feliz com a repercussão dos dois livros. Mais ainda por considerar que tanto um como outro estão ajudando o mundo a entender um pouco da cultura do Afeganistão, vítima, diz ele, da miopia ocidental que confunde seu país com a doutrina do Taleban. Khaled Hosseini defende que não se pode ignorar o conflito entre a Cabul liberal e reformista e as forças mais reacionárias do Afeganistão rural, em especial as regiões que fazem fronteira com o Paquistão, onde as mulheres sofrem a perda da autonomia e ainda são submetidas à opressão masculina, bem anterior à emergência do regime Taleban em seu país (em 1996). A Cidade do Sol, aliás, dedica-se a explorar esse abismo ideológico que existe entre a realidade tribal e patriarcal do Afeganistão e o mundo moderno. Ao eleger como heroínas mulheres maltratadas por um mesmo homem, um sapateiro rude de nome Rashid, Hosseini presta homenagem a todas as mulheres humilhadas e ofendidas em nome de uma tradição canhestra. ''''A história só tomou forma depois de uma viagem a Cabul, em 2003, onde ouvi o relato de uma mulher espancada na rua por um taleban'''', conta. Quando O Caçador de Pipas foi publicado, muitos leitores que nada sabiam do Afeganistão ficaram tão emocionados com a história que lhe escreveram perguntando como podiam ajudar seu país. O que aconteceu com o lançamento de A Cidade do Sol? Você acredita que seus livros possam ajudar as pessoas no Ocidente a se livrar da visão estereotipada que elas têm dos afegãos? Imediatamente após o lançamento de O Caçador de Pipas passei a receber uma média de 16 mensagens diárias pelo correio eletrônico, a maioria delas escrita por pessoas que tinham pouca ou nenhuma informação sobre o Afeganistão além de que foi um país invadido primeiro pelos soviéticos e, depois, pelos americanos. Grande parte dessas mensagens, curiosamente, vinha de crianças ou de mulheres, tocadas pelo drama vivido por seu semelhantes no Afeganistão. Resolvi, então, servir de ponte para ajudar meus compatriotas, disponibilizando o endereço de entidades que recebiam doações. Edward Said disse há 30 anos, em Orientalismo, que o Ocidente criou uma visão deturpada do Oriente como o ''''outro'''', o antípoda, numa estratégia de diferenciação que perpetua os estereótipos colonialistas. Qual a sua opinião sobre a observação de Said? Concordo com Said quando analisa a visão que o mundo ocidental tem do Oriente, mais especificamente do mundo árabe, visto como uma massa homogênea quando é uma cultura rica e diversificada. Estamos tratando de mais de 1 bilhão de pessoas que falam línguas diferentes e de uma região com grande diversidade étnica e cultural. Quando vejo, por exemplo, o Afeganistão retratado nos noticiários e programas de televisão, fico escandalizado com os inúmeros equívocos de interpretação do universo cultural afegão. Em sua opinião, qual é o mais chocante desses equívocos? Considerando as mensagens eletrônicas enviadas por meus leitores , o equívoco maior é o de considerar que o povo afegão é antiamericano e favorável ao regime repressor do Taleban, o que nem de longe corresponde à realidade. Prova disso são os milhões de refugiados que deixaram o país quando o Taleban tomou o poder há 11 anos. O Caçador de Pipas, aliás, é bastante crítico com relação ao regime do Taleban, embora deixe de lado a situação da mulher sob o tacão dos radicais, preferindo falar do universo masculino. Esse foi o motivo de ter escrito A Cidade do Sol como uma espécie de ''''mea-culpa'''' por ter falado tão pouco da condição feminina no Afeganistão? Bem, devo admitir que não foi uma decisão consciente escrever sobre a condição feminina sob o regime taleban. Em O Caçador de Pipas estava certo de que essa seria a história de dois pequenos amigos, um que enfrentaria o conflito interno de sua omissão e outro que permaneceria fiel e íntegro à amizade, mas, no caso de A Cidade do Sol, não tinha personagens em mente. Havia ainda a questão da paternidade no primeiro livro e pensei que seria interessante tratar, desta vez, da relação entre mãe e filha. Já pensava nisso ao fazer a revisão final de O Caçador de Pipas, mas a história só tomou forma depois de uma viagem a Cabul, onde ouvi a história de uma mulher espancada na rua por um taleban. Percebi que o drama da opressão feminina precisava ser tratado com certa urgência e foi daí que surgiu Mariam, obrigada a casar com um homem rude, criada para servir o marido e usar a burca. Então houve um incidente que inspirou A Cidade do Sol como o do garoto Moussa, seu vizinho pobre de Cabul, adotado como modelo do Hassan de O Caçador de Pipas? Não diria que foi um incidente, mas o conjunto de depoimentos que tomei das mulheres durante a viagem que fiz ao Afeganistão em 2003. Elas me levaram a escrever o livro, numa tentativa de mostrar como a realidade pode mudar de uma hora para a outra, especialmente para as mulheres, que exerciam profissões liberais e foram obrigadas a se anular e voltar para casa por conta da opressão do Taleban e da guerra. Qual é a lembrança mais remota que você tem do Afeganistão, uma vez que deixou o país quando seu pai diplomata decidiu buscar o refúgio europeu após a invasão soviética? Era apenas uma criança de 11 anos quando deixamos Cabul, quatro anos antes da invasão soviética, em 1979. Minhas memórias são de um garoto daquela idade - bastante seletivas, portanto. Não comportam julgamentos morais ou políticos. Lembro-me que vivíamos numa Cabul calma, silenciosa, mas não posso julgar pelos outros, porque era um garoto da alta classe média e vivia uma realidade diferente, embora tivesse amigos pobres. Você costuma dizer que Cabul não é o Afeganistão - ou pelo menos não era antes da invasão soviética ou da tomada do poder pelos fundamentalistas islâmicos. Você defende que a Cabul reformista e liberal foi atropelada pelo reacionarismo dos camponeses do resto do país, orientados pelas forças talebans. Há alguma chance de mudar essa cultura sem uma ação política agressiva por parte do Estado, como, por exemplo, foi a abolição da burca, em 1920, por ordem do rei Amanullah? Acho que esse tipo de ação drástica é inoperante, porque são séculos e séculos de condicionamento cultural, uma ordem que mantém as mulheres fragilizadas diante dos homens. Mulheres que eram advogadas ou professoras foram obrigadas pelos fundamentalistas a abjurar suas profissões e nada indica que uma simples lei possa, num passe de mágica, resgatar a dignidade delas. Acho que as mudanças devem se dar lentamente, por meio das organizações formadas para lutar pelos direitos civis, porque ainda existe um abismo entre o que deseja a liberal Cabul e o que prescrevem as forças reacionárias do Afeganistão rural. Há uma resistência muito grande dos tradicionalistas e poucos sinais que indiquem uma mudança nessa mentalidade. Uma regressão é sempre possível. Voltando ao seu primeiro sucesso, O Caçador de Pipas, o filme baseado em seu livro e dirigido por Mark Foster deve estrear em novembro, nos EUA, e em janeiro, no Brasil. Você aprova a adaptação? Coloquei-me à disposição dos produtores do filme para servir como consultor e, de fato, dei muitos conselhos sobre figurinos, locações, costumes e modo de falar dos afegãos. Mas não me envolvi diretamente com a produção por estar, na época, ocupado com A Cidade do Sol. O filme resultou muito fiel ao livro e, diria, é bem emocionante. Apesar disso, o filme já está sendo parodiado no YouTube mesmo antes de sua estréia. Você fica chateado quando vê essas paródias distorcendo a relação de amizade entre Amir e Hassan? Faz parte da cultura americana. Acho que é uma herança pop essa de tratar temas sérios de forma paródica. Quando se atinge um certo nível de sucesso, vira-se alvo dessas brincadeiras e paródias. Acho engraçado. Às vezes as críticas vêem de forma mais ácida, como a resenha de A Cidade do Sol assinada por Michiko Kakutani e publicada pelo New York Times em maio, que classifica o livro de programático e melodramático, acusando-o ainda de ser dualista e lidar com emoções baratas. Isso não o perturba? Fui incrivelmente abençoado pela vasta maioria das resenhas que consegui ler sobre meus dois livros. A alguém que classifica o livro de melodramático aconselharia uma viagem ao Afeganistão para ver realmente o que significa a palavra drama. Aconselharia ainda a falar com as mulheres em Cabul, que continuam a ter uma vida muito parecida com a de Mariam. De resto, considero uma tarefa dificílima escrever melodrama sobre o Afeganistão porque, não importa o que se diga ou escreva, a realidade sempre será mais dramática do que suportaria a imaginação de alguém. Gostaria apenas de lembrar que críticos que viveram no Afeganistão atestam tratar-se de uma novela consistente. Como você espera que os leitores recebam seu novo livro, que já é o primeiro dos mais vendidos no Brasil? Espero que encontrem nele uma boa história e bons personagens, porque, afinal, trata-se de uma novela que pretende estabelecer uma ligação emocional com os leitores. Espero também que eles entendam a situação das mulheres no Afeganistão, que é trágica e não resulta apenas de um conflito bélico, mas de uma guerra moral contra o patriarcalismo. O futuro do Afeganistão, afinal, depende delas. Você já vendeu os direitos para o cinema de A Cidade do Sol? Sim, para o produtor Scott Rudin (de As Horas, Closer, A Rainha e Notas sobre um Escândalo). Não há ainda um roteiro, mas o filme deverá ser lançado em 2009.

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