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Por Rodrigo Naves
Atualização:

Fabrício Lopez é um dos mais importantes gravadores brasileiros, além de manter, com Flávio Castellan, uma importante atividade de ensino da gravura no Instituto Acaia, uma ONG que vem formando jovens artistas muito promissores.

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Sua mais recente exposição, que permanece até 27/8 na Galeria Marília Razuk, tem qualidades poucas vezes encontradas em exposições de estampas. Não é raro, sobretudo em gravuras sobre metal, os artistas se encantarem com os procedimentos técnicos – muitas vezes complexos – envolvidos nesses trabalhos e se perderem num virtuosismo que parece resumir todos as limitações das obras abstratas de pouca qualidade.

Desde o começo de sua produção mais madura, por volta de 2004, Fabrício Lopez abre suas figuras de maneira franca e decidida, sem se deixar levar por um requinte técnico que tende a se esgotar em si mesmo. Na atual mostra sobressai uma espécie de colagem de imagens, obtida pela sobreposição dos desenhos de várias matrizes, como se fosse uma operação cubista realizada pela superposição de memórias, olhares e coisas imaginadas.

Obras de Fabrício Lopez em sua mostra 'Yamatãma O Antitrauma',na Galeria Marília Razuk Foto: Everton Ballardin/Divulgação

A simultaneidade de acontecimentos de ordem muito diversa, pois supõem relações distintas com a realidade, pode pôr em contato um mergulhador, ânforas e árvores. E uma articulação meio suja, mas precisa, consegue dar às diferentes imagens um estatuto que permite ao observador experimentá-las em suas particularidades. De fato, uma árvore vista se diferencia e muito de uma árvore relembrada ou imaginada.

A mescla impura de que é feita nossa consciência adquire nessas obras uma representação visual sedimentar, uma organização precária (e verossímil) de acontecimentos que assimilamos de forma totalmente desigual. Afinal, a faca com que almoçamos e a que nos fere, embora idênticas, serão experimentadas de modo muito diverso. Também a rotina e o tempo depositam seus sedimentos sobre fatos e coisas.

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O que realmente torna esses trabalhos efetivos para o olhar – e não apenas mais uma narrativa maçante – reside na capacidade de Fabrício revelar visualmente esse aluvião impuro de que somos feitos. E isso na própria trama de suas gravuras, também elas uma deposição um tanto aleatória de imagens. Por esse motivo me parece que as matrizes pintadas – que o artista chama “relevos pintados” – têm uma menor capacidade de revelar nossos processos de formação. Nelas a simultaneidade se mostra apenas devido ao fato de as formas se disporem sobre a mesma superfície.

A ausência das sobreposições dá às várias regiões uma intensidade semelhante, o que é pouco plausível em relação à experiência que temos do mundo. Acredito que também que os desenhos sobre folhas de acetato ficam aquém do nível geral da mostra, por reduzirem a complexidade de nossa relação com a realidade.

Tudo isso considerado, convém lembrarmos que, em geral, não somos todos Frankensteins, embora não faltem desequilíbrios de toda ordem entre nós. Como na gravura com dominantes azul e marrom claro, algumas figuras sobressaem, como as duas aves que parecem cair, abatidas em pleno voo, ou as ramagens da parte superior.

Feliz ou infelizmente, não somos o que queremos. A vontade precisa operar num mundo em que entram outras vontades e uma realidade espessa. Há semelhança entre nosso processo de formação e a técnica da xilogravura. O desenho que se traça sobre a superfície da madeira não se deixa marcar pela goiva como um círculo traçado sobre a areia. Dependendo da madeira e do modo como a placa de madeira foi obtida (no jargão da xilogravura, madeira de topo e madeira de fio), os resultados numa gravura serão diferentes.

Estou convencido de que a capacidade de representar a complexidade de nossos vínculos com a realidade advém muito da própria formação artística de Fabrício Lopez. Não foi propriamente na universidade que ele encontrou seu caminho e sim no trabalho coletivo no Espaço Coringa, no qual trabalhava, entre outros, com Flávio Castellan e Ulysses Boscolo. Nesse ateliê, muitas vezes as xilografias eram feitas a 4 ou mesmo a 6 mãos. O esforço para compreender e dar continuidade ao trabalho alheio talvez seja de fato a melhor maneira de aprender a olhar generosamente o mundo.

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FABRÍCIO LOPEZ Galeria Marília Razuk. Rua Jerônimo da Veiga, 131, Itaim, tel. 3079-0853. 2ª a 6ª, 10h30/19h; sáb., 11h/16h. Até 27/8

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