As exibições de pinturas do mestre renascentista Rafael geralmente são reservadas aos locais de arte mais famosos do mundo, como o Louvre em Paris, o Metropolitan Museum of Art em Nova York e os Museus do Vaticano.
Mas, nesta semana, uma galeria na cidade de Bradford, no norte da Inglaterra, exibiu o que diz ter sido identificado pela inteligência artificial como uma obra do pintor renascentista italiano tantas vezes mencionado ao lado de Michelangelo e Leonardo da Vinci.
Os pesquisadores esperam que seu uso experimental de IA acabe com um debate de décadas sobre as origens da pintura, conhecida como De Brécy Tondo, permitindo que seja admitida junto a outras obras de Rafael em cidades mais conhecidas por seus salões de arte.
A exposição de dois meses na Cartwright Hall Art Gallery mostra como os modelos de IA podem abalar o estreito mundo da atribuição de arte profissional, tradicionalmente reduto de especialistas que muitas vezes dedicam toda a carreira ao estudo de um único artista ou período.
Pesquisadores das Universidades de Nottingham e Bradford disseram em janeiro que um modelo de reconhecimento facial com IA mostrou uma semelhança de 97% entre a Virgem Maria retratada na pintura De Brécy Tondo e a Madona Sistina, obra confirmada de Rafael, bem como 86% de semelhança entre o menino e o Jesus do retábulo. Alguns especialistas discordam.
É hora da arte aprimorar tecnologias na identificação de peças?
Hassan Ugail, professor de computação visual da Universidade de Bradford que desenvolveu o modelo, disse que o caso mostra que está na hora de os conhecedores de arte modernizarem seu kit de ferramentas.
“Foi uma grande curva de aprendizado para entender o mundo da arte e como os especialistas quase não usam evidências científicas”, disse Ugail. Os pesquisadores do modelo usaram marcos de “dimensões que o olho humano não consegue ver”, disse ele.
A atribuição de arte pode acarretar enormes riscos financeiros, disse Richard Polsky, que dirige uma empresa de autenticação focada em artistas americanos do século 20.
“Digamos que haja um número muito pequeno de obras genuínas de certo artista nos museus. Você coloca mais uma obra no mercado e pode cobrar um preço enorme, porque ela esteve em mãos privadas por séculos”, disse Polsky. “Não é preciso muito para alguém com dinheiro dizer: ‘Quero isso no meu novo museu e vou pagar US$ 100 milhões’”.
Alguns artistas têm um catálogo definitivo de obras atribuídas. Outros, não – o que significa que os estudiosos e o mercado de arte precisam chegar a um consenso sobre possíveis novas peças, as quais podem render milhões e mudar a compreensão dos espectadores sobre o artista em questão.
Certificação de obra atribuída a Rafael está cercada de ceticismo
Os defensores do uso da IA dizem que ela deixará o processo de atribuição mais justo.
“A confiança no julgamento de um único especialista humano pode ser arriscada devido ao potencial de erro humano, à subjetividade ou aos vieses”, disse Carina Popovici, diretora executiva da empresa de autenticação de IA Art Recognition, que não esteve envolvida no estudo sobre De Brécy Tondo. Ela disse que o algoritmo de seu grupo detecta com precisão as pinturas feitas pelo falsificador Wolfgang Beltracchi, que admitiu em 2012 falsificar obras de cerca de 50 artistas.
Mas, no caso de De Brécy Tondo, especialistas na arte de Rafael e do Renascimento dizem que estão céticos sobre os resultados do modelo de IA.
Um colecionador particular comprou a pintura em 1981, percebendo sua semelhança com a Madona Sistina, e a transferiu para um fundo em 1995 para especialistas estudarem. Os proponentes disseram que é um original de Rafael. Outros dizem que é uma cópia feita em algum momento entre a vida do artista e o século 19.
Rudolf Hiller von Gaertringen, historiador de arte da Universidade de Leipzig que escreveu um compêndio sobre a obra de Rafael, disse que não acha que o pintor teria produzido uma cópia das figuras retratadas na Madona Sistina no auge de sua carreira, na década de 1510, pois preferia variar seus temas.
Patricia Emison, especialista em Renascimento italiano da Universidade de New Hampshire, concorda.
“Repintar a Madonna e o tema da criança que se vê no retábulo [da Madona Sistina] está abaixo de sua dignidade artística”, disse Emison. “Ele não estava só tentando um dinheirinho extra”.
Modelos inteligentes digitais vêm ganhando espaço
Polsky e Emison disseram que não têm certeza se um modelo de IA consegue detectar nuances que os especialistas veem quando olham para uma obra de arte.
“Se você está profundamente imerso no trabalho de um artista, já leu tudo sobre ele. Já esteve em todos os museus do mundo para ver originais, já esteve em exposições em galerias, talvez tenha alguma obra ou já as comprou e vendeu”, disse Polsky. “Não acho que esse tipo de coisa possa ser ensinado”.
Apesar do ceticismo dos especialistas em arte, a IA está rapidamente se tornando um elemento do mundo da arte.
Além de distinguir obras de arte verdadeiras e falsas, os modelos baseados em IA estão gerando novas obras de arte – e novas controvérsias. Um grupo de artistas processou várias empresas de IA este ano, alegando que elas violaram a lei de direitos autorais ao usar arte online como material de treinamento.
Ao contrário do processo no tribunal, talvez seja difícil chegar a uma decisão definitiva sobre a proveniência de De Brécy Tondo. “A atribuição é uma coisa delicada. Não é algo que se pratica com absoluta certeza”, disse Emison.
/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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