Nome central do concretismo brasileiro, o carioca Ivan Serpa (1923-1973) integrou o histórico Grupo Frente e foi mestre de artistas consagrados como Hélio Oiticica (1937-1980) e Waltercio Caldas. Pela primeira vez serão mostrados alguns trabalhos raros na grande retrospectiva dedicada ao pintor pelo Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de São Paulo, que será aberta no dia 3 de fevereiro com 200 obras suas. A mostra cobre todos os períodos da produção de Serpa, do final dos anos 1940 até o último trabalho produzido pelo artista dois dias antes de sua morte, de ataque cardíaco e derrame, em 19 de abril de 1973 – o desenho de um rosto angustiado, mas não exasperado como os de sua Série Negra, sua incursão no expressionismo, em 1964, após anos dedicados ao abstracionismo geométrico.
Até porque ficou conhecido por sua filiação ao movimento concreto, grande parte das obras expostas no CCBB é abstrata. No entanto, por ser um artista marcado pela pluralidade, todas as suas fases e técnicas estão representadas na retrospectiva, em especial as obras geométricas dos anos 1950 – período de fecunda atividade, em que cria, ao lado dos críticos Ferreira Gullar e Mário Pedrosa, o grupo Frente (1954), o front carioca do concretismo no qual figuravam Aluísio Carvão, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape e Franz Weissmann. Com a dissolução do grupo em 1956, Ivan Serpa, cuja paixão pela Europa foi alimentada por uma tia francesa, seguiu para o continente em 1957 com um prêmio do Salão Nacional de Arte Moderna e lá permaneceu até 1959, quando voltou ao Brasil.
Não se conclua por isso que Ivan Serpa fosse um pintor burguês de boa situação financeira. Ao contrário. Como lembra um dos curadores da mostra, Marcus de Lontra Costa, Ivan era um homem simples, que morou a vida toda no Méier, subúrbio carioca, circulava de ônibus e não era disputado por colecionadores (hoje uma tela sua custa em média R$ 1 milhão). Vivia de suas aulas na escolinha do MAM carioca e começou a desconfiar que o reino da ordem concreta tinha algo da sordidez das peças de Shakespeare por trás da rigidez geométrica.
“Nessa viagem pela Europa, ele se encontrou com Max Bill e ficou chocado ao descobrir que o principal artista concreto da Suíça deixava para terceiros a tarefa de executar seus projetos”, conta Lontra – vale lembrar que, em 1951, ao ganhar o prêmio de melhor pintor jovem na primeira edição da Bienal de São Paulo, toda a comunidade dos concretos o saudou. Inclusive Max Bill.
Ivan Serpa amava, antes de tudo, o trabalho artesanal. Meticuloso, era capaz de reproduzir o caminho de cupins devoradores de livros em seu trabalho, só de observar essa devastação, quando trabalhou como restaurador da Biblioteca Nacional. É o caso da série Anóbios (produzida entre 1961 e 1962), exposta na retrospectiva de Serpa ao lado de outras séries como Op-Erótica, Amazônica, Geomântica e Mulher e Bicho.
Op-Erótica (1967) é uma espécie de Suíte Vollard picassiana vista sob o ângulo da op art, em que mulheres contracenam com bestas – por seu conteúdo, ela ocupa o “cofre’ no subsolo do CCBB. Os curadores Marcus de Lontra Costa e Hélio Márcio Ferreira optaram por uma montagem cronológica. Assim, no subsolo está seu desenho mais antigo, de 1949, além de magníficos trabalhos da série Antiletras, que cria novos signos ao subverter letras impressas por sobreposições caligráficas. No primeiro andar estão seus materiais de pintura e seu último desenho. No segundo, as pinturas concretas dos anos 1950. No terceiro, a mais terrível das salas: as obras da Série Negra (1964), o expressionismo radical que faz referência aos famintos de Biafra e às vítimas da guerra do Vietnã. Finalmente, no quarto e último andar, a volta à geometria com cores fortes e certa remissão às teorias cromáticas de Josef Albers.
Dito assim, pode parecer que tantas mudanças em apenas 50 anos de vida são um exagero, mas não quando se tem pressa como Ivan Serpa. Ao nascer, foi diagnosticado com cardiopatia congênita grave e seus pais tiveram de lidar com a possibilidade de o menino não chegar à adolescência. Ainda assim ele completou 50 anos – no dia de sua morte.
Ele perdeu a mãe cedo e foi criado por uma tia francesa, artista de teatro que o iniciou nas artes, exercendo forte influência sobre Serpa. “É curioso que, ao ganhar o prêmio Viagem do Salão Nacional, era esperado que Serpa se instalasse em Paris, por causa da tia, mas ele preferiu outros países, como a Espanha, onde conheceu o poeta João Cabral de Melo Neto”, lembra o curador Marcus Lontra. Na volta, a aproximação com a arte gestual resulta numa pintura de caráter expressionista que transmite a angústia do pintor diante de um mundo caótico, marcado por guerras ideológicas – como a do Vietnã – e a fome (em Biafra, por exemplo). A arte concreta já não respondia às grandes questões de Serpa. “Não parecia fazer sentido a ordem e a rigidez geométrica num mundo como esse, destroçado”, observa Lontra. O resultado foi o advento da Série Negra, que o aproximou dos artistas ligados à Nova Objetividade brasileira.
O nome deriva de uma mostra realizada no MAM carioca em 1967, em que a figura dominante foi mesmo Hélio Oiticica, aluno de Serpa, que propôs com o movimento uma reflexão sobre o papel das vanguardas brasileiras. Serpa, por essa época, estava antenado com a arte pop e a arte op, como muitos de sua geração. É desse ano sua série de desenhos eróticos exposta na retrospectiva. No fim da vida, Serva volta à abstração em pinturas que retomam o caminho do construtivismo.
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