Desde 1987, quando participou da 19.ª edição da Bienal de São Paulo, o artista japonês Tadashi Kawamata não vinha ao Brasil. Mas a forte impressão que o País deixou nele rendeu muitas obras ao redor do mundo. Essa ressonância é traduzida tanto por instalações na Documenta de Kassel de 1992 (uma favela estilizada) como na badalada Art Basel de 2013, quando montou um “favela-café’. De volta ao País, ele abre para o público, nesta terça, 4, sua mais recente obra, Construção, no segundo andar da Japan House São Paulo.
Desta vez, Kawamata deixou a favela de lado e afirmou sua construtiva alma japonesa: trata-se de uma instalação feita de 180 mil hashis (par de varetas usadas como talheres), elemento básico da cultura nipônica.
O título é quase um comentário irônico. Habituado a transformar o panorama urbano por meio de estruturas que se assemelham a grandes demolições – a mostra tem fotos e vídeos dessas instalações –, desta vez Kawamata construiu uma casa toda de hashis. O artista, que veio a São Paulo supervisionar a montagem, a cargo de 39 voluntários, reafirma que a fragilidade é a principal característica do “projeto” – ele prefere a palavra à desgastada ‘instalação’, insistindo em associar seu trabalho ao princípio filosófico da ‘desconstrução’, do filósofo pós-estruturalista francês Jacques Derrida (1930-2004). E justifica: “Como em Derrida, não se trata de um projeto para destruir, mas para desestabilizar”.
Essa proposta é imediatamente apreendida pelo visitante no primeiro contato com sua Construção, que interfere no espaço arquitetônico da Japan House concebido por Kengo Kuma. Nada mais justo: há seis anos, Kuma projetou uma casa de bambu na elegante região de Minami Aoyama, em Tóquio, bem vizinho ao prédio que Herzog & De Meuron construíram para a grife Prada. Evoque-se que a casa de Kuma replicava o estilo das instalações de Kawamata, fiéis à concepção que os arquitetos desconstrutivistas têm da filosofia de Derrida – a arquitetura como expressão da fragmentação contemporânea, um ponto de interrogação, um enigma, enfim, que fascine e desestabilize o espectador.
Segundo Natasha Barzaghi Geenen, diretora cultural da Japan House, o convite feito a Kawamata contemplou também esse aspecto, o de ver a arquitetura local de outra forma, a partir dessa massa “simultaneamente densa e leve de hashis, alterando a natureza desse objeto tão corriqueiro”.
Ela destaca também a participação de estudantes voluntários (350 universitários inscritos) como parte do processo colaborativo que caracteriza a obra do artista japonês, nascido em 1953 em Hokkaido, um dos mais jovens japoneses convidados para a Bienal de Veneza de 1982 (com apenas 28 anos ele conquistou o Ocidente, residindo hoje em Paris, onde é professor).
“Cinco anos depois de Veneza, participei da Bienal de São Paulo e tive a oportunidade de conhecer o Rio, onde o que mais me impressionou foi a construção precária das favelas que, apesar disso, têm um aspecto sólido, algo comparável a células cancerígenas se multiplicando”, diz. Kawamata ficou tão impressionado que, ao projetar um jardim para a Documenta de Kassel, acabou reproduzindo uma favela brasileira.
Suas intervenções no espaço urbano, construídas com material sucateado, redefinem as relações dos habitantes das grandes cidades com edifícios e monumentos com os quais estão habituados. Em São Paulo, em 1987, ele fez uma intervenção ao ar livre na esquina da movimentada avenida Nove de Julho com a rua Caçapava, alterando a paisagem local. Em Paris, ele montou em 2013 um barraco no alto da coluna da Place Vendôme, subvertendo a obra de Lepère e Gondoin dedicada aos heróis franceses. Comentário político? Kawamata não chega a tanto, mas garante que não se rende ao estereótipo da arte popular japonesa feita para agradar, como Murakami.
Por considerar, aliás, que a pintura era uma linguagem insuficiente como meio de expressão, Kawamata optou por “sair da tela” e conquistar o tridimensional. “Queria ver o que havia por trás dela”, diz, ao comentar a simulação de situações urbanas de suas intervenções ‘in situ’, que evocam pontes, estradas e passagens das metrópoles. Mais ou menos como o argentino Lucio Fontana, que criou um espaço virtual com suas incisões na tela (há, de fato, uma outra pintura dentro delas).
“Não sei como me classificar, mas sou um pouco xintoísta, não no sentido de cultuar os antepassados ou o politeísmo, mas no sentido de acreditar em forças abstratas que modificam o mundo concreto por meio da inclusão, o que tento fazer em meu trabalho.” Nesse sentido, o convite de Kawamata para o público entrar em sua casa feita de hashis na Japan House é uma forma de traduzir formalmente essa crença na associação inclusiva e transformadora.
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