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Lições para os atuais tempos de crise

Para Eduardo Viveiros de Castro, obra ganha força no cenário de crise mundial

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Foto do author Ubiratan Brasil

Poucos conhecem tão bem a cultura indígena brasileira como o professor de antropologia e etnólogo americanista Eduardo Viveiros de Castro. A ponto de ter sido apresentado por seu mestre e colega Claude Lévi-Strauss como o fundador de uma "nova escola na antropologia". É o que confirma uma de suas diversas obras, A Inconstância da Alma Selvagem (Cosac Naify), coletânea de ensaios que revela sua grande contribuição para a antropologia, o "perspectivismo amazônico", proposição teórica que rege todas as suas formulações. Afinado com o trabalho de Lévi-Strauss, com quem manteve inúmeros contatos, Viveiros de Castro abriu, no mês passado, o ciclo de conferências que ocorre todas as quintas-feiras e vai até o dia 11, no Centro Universitário Maria Antônia, da USP, em homenagem ao centenário de Lévi-Strauss. Conversou também com o Estado sobre o mestre francês, cuja obra conhece em detalhes, como mostram os principais tópicos da entrevista. CARREIRA Discute-se hoje o grau de homogeneidade, de unicidade da obra de Lévi-Strauss, que é muito vasta - vai do fim dos anos 1930 até 1993, quando publica Olhar, Ler e Escutar. O debate trata das mudanças de ênfase significativas em seu trabalho. Entre a primeira fase e a última, de um total de três, há muita diferença. Na primeira, o destaque é As Estruturas Elementares do Parentesco, seu primeiro grande livro, publicado em 1949 e reeditado em 1967 com mudanças importantes. Foi a obra que o tornou famoso, embora já tivesse publicado artigos. Com ela, começou a ser conhecido nos EUA, para onde rumou depois de passar pelo Brasil, ou seja, durante a 2ª Guerra. Foi nos EUA, aliás, que Lévi-Strauss aprendeu antropologia e não no Brasil - aqui, ele conheceu os índios enquanto em Nova York se uniu aos sábios europeus que fugiram da guerra e, juntos, fundaram a New School. Nos EUA, ele teve acesso a imensas bibliotecas, nas quais estudou etimologia pela primeira vez. Quando voltou para a França, defendeu a Tese de doutorado que se transformou em As Estruturas Elementares do Parentesco, que teve impacto fulminante na antropologia. AS ESTRUTURAS ELEMENTARES DO PARENTESCO É um livro que, embora tenha aberto uma quantidade de perspectivas (em particular nas relações que ele estabelece entre troca matrimonial e comunicação, semiologia e sociologia), cria uma espécie de projeto de uma ciência social unificada. Na verdade, uma ciência dos signos em que o parentesco também é uma troca de signos: o que se trocam não são pessoas, mas relações. É preciso lembrar que, em 1949, Lévi-Strauss foi muito influenciado pela cibernética, e que as teorias da ciência da informação causaram muito impacto sobre ele. O nível de interlocução desse livro está nos grandes pensadores, como Marx, Durkheim e, principalmente, Freud, porque trata do parentesco, enfim, um tema psicanalítico. Na verdade, acredito que o grande e polêmico interlocutor de Lévi-Strauss é Totem Tabu, de Freud. Assim, As Estruturas Elementares do Parentesco é uma espécie de resposta do antropólogo a Freud, que se apoiou na antropologia da sua época para escrever sua obra. Lévi-Strauss fez o contrário, ou seja, uma leitura de Totem Tabu por um antropólogo, e o resultado é uma leitura polêmica, admirativa, mas fortemente polêmica. Então, essa seria a primeira fase, que vai mais ou menos até 1962. Durante esse período, ele escreve o livro que o tornou mundialmente famoso, Tristes Trópicos, de 1955. TRISTES TRÓPICOS Curiosamente, não é livro essencialmente antropológico, pois foi escrito depois de uma derrota acadêmica no College de France, o que o levou a acreditar que não teria futuro na antropologia. Foi quando criou esse novo gênero, o romance filosófico de viagem. Tristes Trópicos foi até indicado para o prêmio Goncourt, mas não pôde disputar por não ser considerado romance. Mesmo assim, teve uma recepção crítica esplêndida. É curioso porque é um livro do ponto de vista estilístico extremamente tradicional, e foi escrito com uma linguagem deliberadamente clássica, justamente em uma época em que aconteciam as grandes experimentações lingüísticas do Nouveau Roman. Não obstante, Lévi-Strauss optou por um livro escrito em alexandrinos, mas que tinha dentro dessa forma clássica anacrônica toda uma filosofia, um ponto de vista totalmente novo. Esse descompasso é o que o torna interessante. É um livro careta do ponto de vista literário, mas essa forma careta é também bastante inédita, pois mistura diário, etnografia, especulação filosófica, considerações estéticas, tudo estruturado de uma maneira bastante complexa, com avanços e flash-backs. Do ponto de vista da linguagem, é uma obra anacrônica, estilo século 17. Mesmo assim, fez muito sucesso e também foi decisivo, eu creio, para transformar e ampliar a sensibilidade cultural européia ao oferecer uma visão dos outros, dos selvagens, do mundo além-civilização. RAÇA E HISTÓRIA Foi um folhetinho encomendado pela Unesco, que tinha o grande projeto de acabar com o racismo, uma resposta ao nazismo. Esse livro fez parte do programa dos cientistas contra o racismo. Ali, vários cientistas publicaram livros do ponto de vista da biologia e Lévi-Strauss encarregou-se de um de antropologia. Foi uma obra fundamental no sentido de criar uma consciência urbana educada sobre o primitivo, além de ser nova em relação ao modelo revolucionista normal colonialista. Era o momento em que o colonialismo entrava em crise conceitual e Lévi-Strauss começa a perceber o tamanho do equívoco sobre o qual ele estava, digamos, assentado. Acredito que Lévi-Strauss foi fundamental no processo de denunciar os fundamentos colonialistas da metafísica ocidental e de, no mesmo passo, denunciar os fundamentos metafísicos do colonialismo ocidental. Por isso que, embora antropológica, Raça e História foi lida também como uma obra filosófica. No fundo, a grande discussão de Lévi-Strauss trata, a meu ver, da questão dos fundamentos colonialistas da metafísica e fundamentos metafísicos do colonialismo, da exclusão do outro. Todo um conjunto de pecados, digamos assim, da consciência ocidental, Lévi-Strauss denuncia com grande eloqüência e veemência. Tristes Trópicos traz um pouco disso. Foi um livro que ajudou a criar uma espécie de ?alterofilia?, no sentido de uma atitude mais positiva em relação à alteridade cultural no bojo desse grande exame de consciência que foi o pós-guerra, quando os europeus se deram conta das atrocidades que foram capazes de cometer, percebendo que a noção de selvagem mudara complemente. A obra de Lévi-Strauss revela uma certa atualização da consciência européia no pós-guerra. DÉCADA DE 1960 No início dos anos 1960, ele escreve dois livros capitais, O Totemismo Hoje e O Pensamento Selvagem, que configuram uma espécie de pausa em seu trabalho antropológico sobre parentesco, problemas da organização social, dramas de relação social. Lévi-Strauss começa a deslocar seu interesse para problemas de cosmologia, classificação, mitologia. Para ele, pensamento selvagem é aquele em estado anterior ao de ser domesticado pela ciência, com a finalidade de ter um rendimento. Ou seja, um pensamento que não foi racionalizado em um sentido econômico-científico. Discussões que introduziram o tema da classificação a partir da mudança de consciência do ponto de vista europeu. Ou seja, Lévi-Strauss insiste que o pensamento indígena não é confuso, obscuro, nem está perdido nas brumas da magia e da participação primitiva. Ao contrário, é um pensamento obcecado com a ordem, a distinção, a diferença, a classificação, o conhecimento, e ele mostra que, na verdade, não há descontinuidade radical entre a ciência moderna e a ciência selvagem. Ambas estão fundadas no mesmo impulso e, nos livros, ele defende quase que no sentido jurídico o pensamento selvagem como um pensamento integral. Enfim, dissolve os graves equívocos que os europeus mantinham a respeito do outro. Dissolve o etnocentrismo. ANTROPOLOGIA PÓS-LÉVI-STRAUSS A dimensão política com os povos não-ocidentais mudou os termos da discussão a partir da década de 1970 e fez, curiosamente, que a obra de Lévi-Strauss o levasse para um certo ostracismo por conta do sucesso em modificar a sensibilidade dos europeus em relação aos outros povos. Houve, assim, uma pulverização com o fim do discurso unificador das ciências humanas. Isso posto, acontece agora um processo de reavaliação da obra de Lévi-Strauss no momento em que o estruturalismo está voltando.Trata-se de um processo complexo, porque, de 1968 para cá, o que houve não foi só uma radicalização política-conceitual da antropologia, mas também uma revolução conservadora, capitaneada por Reagan, Thatcher e que continua até hoje, com Sarkozy. Uma revolução contra a esquerda, derrotada pelos Estados Unidos com o fim da Guerra Fria. A antropologia vive uma fase de reconstrução após 20 anos de arrumação da bagunça. Uma reorganização, entretanto, dentro de um ambiente mundial de extremo pessimismo em função de uma crise objetiva da qual, salvo engano, não vamos sair, ou pelo menos, não vamos sair inteiros. E, nessas condições, a antropologia tem de pensar no que vai acontecer com o homem em geral, no momento em que o homem se tornou um fenômeno natural. Antropólogos físicos, arqueólogos, paleontólogos, todos dizem que o homem produziu mudanças tão dramáticas no meio ambiente que já vivemos em uma nova era geológica chamada antropoceno. Isso porque o homem mudou o clima, a distribuição das espécies no planeta. A questão é saber se, no antropoceno, haverá lugar para o homem. Paradoxalmente ou ironicamente, é a questão que está aberta. E, sob essas condições, a obra de Lévi-Strauss é moderna por tentar pensar a espécie humana como a trajetória de uma espécie que é um personagem planetário. Em tempos sombrios, a obra de Lévi-Strauss tem muito o que nos ajudar.

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