O título da exposição, Matriz do Tempo Real, que o Museu de Arte Contemporânea (MAC) abre amanhã, 13, faz referência a um livro do cineasta russo Andrei Tarkovski (Esculpir o Tempo, Editora Martins Fontes, 1998), em que o diretor de O Sacrifício defende uma teoria contrária às alucinantes técnicas de montagem de outro mito do cinema, o também russo Eisenstein. Para o último, é o conceito que dita a edição de um filme, feita de justaposições e cortes abruptos. Para Tarkovski, ao contrário, é o tempo que conduz a montagem, levando o espectador a refletir sobre a essência do cinema. Curador da mostra, Jacopo Crivelli Visconti concorda com Tarkovski. E reuniu 28 artistas – brasileiros e estrangeiros – para refletir sobre a passagem do tempo em 45 obras que exigem do espectador disposição poética para entrar em sintonia com essas criações.
Não se trata, evidentemente, de uma exposição fácil. Tampouco se propõe ao visitante uma leitura científica do tempo como a do físico inglês Stephen Hawking. Basta disposição para entender a natureza desses trabalhos que correspondem, de forma análoga, à maneira de esculpir uma imagem ditada pelo ritmo do tempo. E, logo ao entrar na exposição, o visitante vai encontrar uma obra icônica que, de certa maneira, antecipou a onda conceitual que dominaria o mundo da arte nos anos 1960 e 1970. Trata-se de 4’33”, peça de 1952 que o compositor norte-americano John Cage (1912-1992) considerava sua mais importante contribuição à música. Nela, durante 4 minutos e 33 segundos, o público só vai ouvir o som ambiente – Cage considerava que qualquer som poderia constituir uma peça musical.
Um dos grandes nomes da arte conceitual, o japonês On Kawara (1932-2014), foi outro artista que trabalhou a questão do tempo de forma radical: durante 48 anos, dia após dia, registrou em pequenas telas as datas em que produziu as pinturas, congelando o tempo. O efêmero passa a ser o eterno em sua série Today (Hoje), composta por mais de 3 mil dessas telas, uma delas exposta ao lado de um dos últimos trabalhos do artista brasileiro Leonilson (1957-1993). A obra, um bordado produzido em 1991, quando o artista já sabia ser portador do vírus HIV, faz uma citação ao nome de Penélope, a esposa de Ulisses que espera o marido por anos na Odisseia de Homero. Detalhe: Leonilson coloca à frente do nome de Penélope o artigo masculino, tomando seu lugar.
“On Kawara e Leonilson são parecidos, embora tratem do tempo de modo diverso”, observa o curador Crivelli Visconti. “O primeiro o faz de maneira asséptica, enquanto Leonilson o trata de maneira dramática”, compara. A exemplo de On Kawara, há na mostra outros pioneiros conceituais, como o argentino David Lamelas, 72, e a alemã Irma Blank, 83, cujo diálogo se dá no tempo. Artistas que já não estão mais neste mundo como Ivens Machado (1942-2015), que trabalhou com materiais de arquitetura, conversam com outros mais novos, como o paulistano Daniel de Paula, de 30 anos. Em sua obra Testemunhos, Daniel usa fragmentos de escavações para levantamento geológico para marcar a passagem do tempo. Testemunhos de rocha extraídos de obras públicas e descartados constituem um trabalho de “edição” mais próximo de Tarkovski – uma escultura literal do tempo.
Outros artistas pouco conhecidos, embora veteranos, como o italiano Franco Vaccari, de 81 anos, destacam-se na exposição pela percepção poética do tempo. Vaccari é um resnaisiano. Em seu vídeo Reserva de Lembranças para a Época do Alzheimer, ele faz uma montagem de fotos e vídeos caseiros de famílias italianas que, desconhecidas, acabam contando uma história coletiva, segundo o curador. Outro italiano convidado por Crivelli Visconti é o jovem Renato Leotta, que deixou três pedaços de um tecido azul antigo imersos em água do mar e depois fixou o sal na superfície, criando um efeito pictórico com as marcas do tempo.
Entre os brasileiros, o fotógrafo Mauro Restiffe buscou registrar essa passagem revisitando e fotografando lugares onde morou na Rússia, nos anos 1990. A paulistana Ana Amorim, na trilha de On Kawara, registra seu cotidiano desenhando um mapa dos trajetos que realiza todos os dias. Se o visitante der sorte, poderá ver a discreta artista nessa performance (sem data marcada) da exposição do MAC, museu pioneiro na organização de acervos de arte conceitual no Brasil. A mostra é uma parceria com a Base 7.
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