Memória de um ambiente sombrio

Tristes Trópicos revela a consciência de quem assiste ao desaparecimento de sociedades e vê a diferença entre elas

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Por Manuela Carneiro da Cunha
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Tristes Trópicos, em papel-bíblia, abre o volume Lévi-Strauss publicado neste ano na coleção La Pléiade. Graças ao enciclopédico trabalho de Vincent Debaene, seu prefaciador, pouco resta a saber sobre o livro e a recepção que obteve. Resenhas em prestigiosas revistas do mundo inteiro devem ter esgotado o que se poderia dizer. Aqui lembremos simplesmente que o livro não é contemporâneo do período brasileiro de Lévi-Strauss: saiu em 1955, vinte anos depois da chegada do jovem então filósofo Lévi-Strauss ao porto de Santos e já em 1957 traduzido no Brasil1. Foi seu segundo livro, se excetuarmos o opúsculo Raça e História. O primeiro, publicado em 1949, o monumental Estruturas Elementares do Parentesco, havia vendido uns parcos oitocentos exemplares. Este, ao contrário, foi um retumbante sucesso. Resultado de encomenda, em um momento marcado por desapontamentos no plano acadêmico e pessoal, foi escrito em cinco meses, e com uma certa amargura. O enigmático título já estava escolhido para um romance que - felizmente, diga-se de passagem - nunca conseguiu ir além de algumas páginas. Mas por que Tristes Trópicos, quando os trópicos, por definição ensolarados nas paredes das estações de metrô, fazem sonhar os friorentos parisienses? Arrisco uma interpretação que vai além do paradoxo, explicação fácil demais: há um ambiente sombrio neste livro, que deriva sobretudo da consciência de se estar assistindo ao desaparecimento de sociedades inteiras e das diferenças entre elas. O livro deslumbra já de saída pela sua prosa classicamente elegante que foi comparada à de Chateaubriand. É um livro de memória (e não de memórias) que, sem o citar jamais, constantemente remete a Proust. Também já se disse que usa a técnica surrealista do collage para justapor de forma sempre surpreendente fragmentos de relatos anteriormente elaborados. É um livro que inaugura um gênero próprio: o Goncourt, o maior prêmio literário francês, desculpou-se por não o atribuir a Tristes Trópicos porque as regras exigiam que se premiasse uma obra de ficção. E Lévi-Strauss, que havia aberto Tristes Trópicos com a famosa frase "odeio viagens e viajantes", previsivelmente recusou o prêmio anual de livros de viagem. É, porém, assim mesmo um livro de viagem, mas de viagem filosófica à maneira de Montaigne, o alter ego de Lévi-Strauss. É sabido que Lévi-Strauss esteve no Brasil pela primeira vez em 1935 como parte da "missão francesa" chamada pela elite paulista em geral e por Julio de Mesquita Filho, de O Estado de S. Paulo, em particular, para a fundação da Universidade de São Paulo. Nas férias escolares de 35-36, vai conhecer os caduveo e os bororo. Já desligado da USP, que não lhe quis conceder um sabático para pesquisa, fez em 1938 sua grande expedição ao longo da linha telegráfica de Rondon, quando chegou aos nhambiquaras (nambikwara) e a outros dois grupos indígenas. Em início de 1939, volta para a França. Menos sabido é que, dois anos mais tarde, o Ministério de Relações Exteriores de Getúlio Vargas aplicou-lhe as vergonhosas diretrizes gerais do Estado Novo, que recusavam asilo aos judeus perseguidos. Foi o programa Rockefeller de resgate de intelectuais quem lhe salvou a vida e o levou para Nova Iorque. No Brasil, o antropólogo mais importante do século 20 teria sido possivelmente diferente. Ao fim e ao cabo, talvez tenha sido uma sorte para Lévi-Strauss não ter podido se refugiar no Brasil durante a ocupação alemã na França. Mas para o Brasil certamente foi uma perda, e das maiores. Tristes Trópicos é também em grande parte uma inspirada etnografia do Brasil dos anos 30. Qual foi o Brasil que Lévi-Strauss conheceu e descreveu? Foi, antes de mais nada, o Brasil das grandes extensões ainda não domesticadas, o Brasil das macroregiões que tanto contrasta com as microregiões do velho Mundo. Um Brasil que começava a ser "desbravado". Uma característica que surpreende neste filósofo e antropólogo é a sua atenção à paisagem e à história natural. Já interpretei o gosto que Lévi-Strauss declara pela geologia como uma metáfora para seu antiempiricismo e para sua concepção folheada da estrutura. Mas é muito mais do que isso. É literal. Como bem escreveu Anne-Christine Taylor, paradoxalmente para alguém que é considerado avesso à história, é a marca do passado no presente que Lévi-Strauss procura. O que o fascina em São Paulo é primeiro uma história que, nesses anos 30, está tão acelerada que se a pode ver e tocar. Avenidas se abrem no meio das hortas, o Pacaembu ainda é rural, o prédio Martinelli domina a paisagem, o prédio que até hoje se chama Banespa está em construção, a riqueza já saiu dos Campos Elísios e está emigrando para a avenida Paulista. E a elite antiga, francófila e sofisticada, rodeada de artistas, está assistindo ao enriquecimento dos italianos e à ascensão de uma nova elite intelectual que a Universidade de São Paulo contribui para formar. A etnografia que Lévi-Strauss propõe a seus estudantes é a própria cidade de São Paulo em transformação. Paisagens não são simplesmente visuais em Lévi-Strauss, são multissensoriais. Cheiros, cores, impressões táteis as compõem. Quando enviou Tristes Trópicos para publicação, Lévi-Strauss expressamente mencionou que não se interessava em que reproduzissem suas fotos: como se estas fossem apenas uma dimensão secundária daquilo que descrevia mais plenamente através de outros sentidos. Quando finalmente se publicaram essas fotografias, em Saudades do Brasil e Saudades de São Paulo, descobriu-se um fotógrafo excepcional! Nos quatro anos que passou no Brasil, Lévi-Strauss percorreu imensos territórios à procura de uma experiência direta com sociedades indígenas. Como já foi amplamente dito por Eduardo Viveiros de Castro, Fernanda Peixoto e vários outros, esses encontros foram fundamentais para a antropologia de Lévi-Strauss, e por conseguinte da antropologia tout court, mais pelas intuições que provocaram do que pela etnografia que acrescentaram: os nhambiquaras, a mais simples das sociedades que encontrou, são o esteio velado da teoria da aliança do parentesco, e os bororo, os mais complexos, da teoria do dualismo em perpétuo desequilíbrio da América indígena. O que aconteceu nessa experiência de campo? Um filósofo pela primeira vez dialoga com sociedades indígenas de forma mais direta e, nesses encontros, a filosofia se alargou. Sustento que é como se Montaigne tivesse ido em pessoa ao Brasil; Montaigne que foi o único, diz Lévi-Strauss, que soube avaliar à sua justa medida o que significava descobrir que o Velho Mundo não estava só. O encontro de um filósofo com uma humanidade outra gerou novos modos de conhecimento: a abertura ao universo humano aporta luzes a uma filosofia ocidental que reflete sobre seu umbigo e se crê universal. Nesses encontros, a filosofia se alargou. Resta saber por que essa foi a primeira vez que um filósofo quis se embrenhar durante meses no sertão bravio e aceitou passar pelo esforço, a fome, o cansaço e todas as dificuldades que tais viagens implicam. Esta pergunta, Lévi-Strauss também se colocou em um momento de dúvida: entre 15 e 30 de agosto de1938, é obrigado a ficar esperando em Campos Novos o resto de sua equipe enquanto os índios se furtam a qualquer pesquisa. Desencorajado e sem ter o que fazer, compõe o enredo e escreve, no estilo modernizante de Giraudoux, algumas cenas de uma peça de teatro passada na Roma dos Césares, intitulada a Apoteose de Augusto. Na peça, Cinna se reencontra com seu amigo imperador, às vésperas da apoteose que tornará o imperador divino. Enquanto Augusto se engrandecia na sua pátria, Cinna havia se exilado e conhecido outras plagas. Com que vantagem? O que havia aprendido que não poderia ter aprendido sem sair de Roma? A dúvida é transparente. Hoje, com a publicação de Lévi-Strauss na Pléiade, chegou a vez da apoteose de Cinna. Aluna de Lévi-Strauss de 1967 a 1970, Manuela Carneiro da Cunha é professora de antropologia na Universidade de Chicago e membro da Academia Brasileira de Ciências 11 de Janeiro de 1958 Para o sr. Lévi-Strauss - e nisso ele se distingue do "explorador" - o indígena não é exótico "no espaço", mas exótico "no tempo", um tempo que, como veremos, é mais o tempo da quarta dimensão do que o intervalo cronológico que nos afasta da descoberta. Por este lado, ele se distingue, igualmente, do etnógrafo, em sua definição corrente. Assim, o "tom" do seu livro torna-se cada vez mais alto e mais grave (se posso reunir essas duas imagens contraditórias) das primeiras para as últimas páginas: mais alto nas preocupações, mais graves na seriedade dos problemas que suscita. A viagem do sr. Lévi-Strauss é, ao mesmo tempo, uma viagem para o passado e uma viagem para o futuro. Seu mundo é o mundo bergsoniano da duração ininterrupta e deslizante: se podemos, em boa lógica, imaginar um começo e um fim, essas noções se dissolvem irrecuperavelmente nas brumas do desconhecido: mesmo o presente, se não é propriamente uma ilusão, não se mostra mais apreensível do que o passado ou o futuro: "les temps juit", dizia Boileau num verso célebre, "et nous traïne avec soi: le moment où je parle est dejà loin de moi"(...). O Tempo é o valor central de Tristes Trópicos: é o valor presente em todas as páginas, em todas as linhas. É no Tempo, e não no Espaço que se escreve a história do homem: é o Tempo, igualmente, que a explica e que o explica. Ainda me referirei a algumas qualidades proustianas deste livro; mas, desde já, não deixarei de acentuar que, pela sua "atitude de espírito", Tristes Trópicos é, em grande parte, uma "procura do tempo perdido" em Etnografia. (Trecho do texto ?Meditação sobre o Destino?, primeira das três partes da apresentação escrita pelo críticoWilson Martins para ?Tristes Trópicos?, publicada no ?Suplemento Literário? de O Estado de S. Paulo em 11 de janeiro de 1958)

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