Desde 1977, quando o pintor e escultor baiano Rubem Valentim (1922-1991) montou sua instalação Templo de Oxalá na 14.ª edição da Bienal de São Paulo, esse conjunto não era apresentado integralmente. Coube à Galeria Almeida & Dale o privilégio de remontar a obra, que pode ser vista até o dia 14 de maio, antes de sua itinerância pelo Brasil e Roma. Cabe lembrar que Valentim, cujo centenário de nascimento será comemorado em novembro, morou alguns anos na Itália, sendo um dos poucos artistas brasileiros a ter sua obra analisada pelo grande crítico Giulio Carlo Argan (1909-1992) nos anos 1960.
Argan, refletindo sobre seu trabalho, viu nele a decomposição e a geometrização de signos religiosos, reorganizados, segundo o crítico, “em simetrias rigorosas”. Argan, que não escondia sua predileção por artistas racionalistas, ficou encantado com essa redução intuitiva à “essencialidade de uma geometria primária”. E, naturalmente, com o senso cromático de Valentim. Só não se atreveu a falar de sua religiosidade, porque o universo dos orixás era praticamente desconhecido para Argan.
'Geometria sagrada'
Não é o caso do curador da exposição, Daniel Rangel, ele mesmo iniciado nos mistérios das religiões de matriz africana. Em direção contrária aos críticos que preferiram associar a obra de Rubem Valentim ao construtivismo, Rangel frisa que a questão do transcendente é fundamental no trabalho do artista baiano, concordando com o artista Bené Fonteles, assistente de Valentim, que viu em seu projeto a expressão de uma “geometria sagrada” de tempos imemoriais. O fato é que Valentim, como ele mesmo se definia, nunca foi concreto. Sua obra queria, antes, ser profundamente brasileira. Ou melhor: afro-brasileira. Foi com esse espírito que nasceu a exposição Ilê Funfun. Rangel explica que Ilê significa casa e terreiro, o templo sagrado de culto aos orixás. Funfun, a cor branca, é uma referência aos que se vestem de branco, tanto da família de Oxalufã, o Oxalá velho, como de Oxaguiã, o Oxalá moço.
Núcleos
A exposição está dividida em três núcleos: o principal é o Templo de Oxalá, um conjunto de 20 esculturas e 10 relevos, considerados a síntese de sua obra. Esses trabalhos foram doados ao Museu de Arte Moderna da Bahia em 1997 e restaurados este ano para a exposição por iniciativa da Galeria Almeida e Dale, que deve produzir o catálogo raisonné do artista. Esses relevos eram originalmente brancos. O próprio Valentim se encarregou de aplicar cores básicas (azul, vermelho) para identificar diferentes orixás, segundo o curador da mostra.
Foi durante sua estadia na Europa que Valentim aprofundou sua relação com a arte africana, estabelecendo vínculos entre a abstração geométrica e as práticas religiosas do continente. Em Londres e Roma, entre 1964 e 1966, o artista visitou exposições que estreitaram seus laços com as divindades da África – o machado duplo de Xangô, presente em muitos de seus trabalhos, passou a integrar sua obra por essa época como signo de justiça e conhecimento.
Memória
Um segundo núcleo da mostra, Ateliê, contempla os derradeiros trabalhos de Valentim que estavam em produção quando ele morreu, em 1991, além das ferramentas que usava. Finalmente, no terceiro núcleo, Cronologia, o curador Rangel revela um material inédito com documentos pessoais, fotografias e textos sobre sua obra, entre eles o do crítico e psicanalista Theon Spanudis, seu incentivador, que comenta num artigo a importância do Templo de Oxalá em 1977, quando foi exposto na Bienal.
A passagem da exposição por Roma é importante: foi lá que Valentim, nos anos 1960, começou a pesquisar nos museus a iconografia religiosa africana. O curador da exposição italiana, Cristiano Raimondi, que assinou a mostra de Volpi em Mônaco, em 2018, considera o momento propício. Valentim está em alta: no fim do mês ele ganha outra exposição, no Rio, promovida pela Pinakotheke de Max Perlingeiro, com o lançamento do livro Rubem Valentim: Sagrada Geometria, de Bené Fonteles.
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