No dia 28 de maio de 1960, três anos antes de sua morte, o pintor paranaense Miguel Bakun (1909-1963) descreveu um estranho incidente que lhe pareceu uma manifestação de caráter teofânico. À noite, em suas orações, implorou ao papa que tivesse o poder de projetar a figura de Deus em suas telas. Em seguida, a luz se apagou e Bakun ouviu um grande estrondo. É verdade que nesse período predominava o caráter religioso em sua obra, mas as verdadeiras pinturas de natureza mística já existiam antes disso. São elas as suas paisagens de textura pastosa e máxima economia cromática, obras definidas como pinturas inscritas na tradição pós-impressionista – notadamente próximas de Van Gogh, como se referiam a elas críticos de sua época.
O mais descrente dos pagãos não deve duvidar da sinceridade de Bakun diante dessas paisagens torturadas e quase monocromáticas, que provocam no espectador uma reverência religiosa. São pinturas que evocam o silêncio de um universo pacificado, advindo por contraposição dos tormentos de um homem sensível e depressivo, que acabou se matando. Nascido em Mallet, no interior do Paraná, descendente de eslavos e filho de um ferroviário, Bakun, pintor autodidata, teve uma vida difícil, embora fosse reconhecido no meio curitibano.
Agora, com a pequena retrospectiva de sua obra que a Galeria Simões de Assis, em São Paulo, promove até dia 14 de dezembro, o interesse pela pintura de Bakun cresce não só no Brasil como no mundo. Da mostra, que reúne 40 pinturas, duas delas foram compradas por colecionadores estrangeiros, um inglês e outro português – é a primeira vez que uma obra do artista é adquirida por compradores de fora, segundo o marchand Guilherme Simões de Assis. A exposição também foi visitada por uma das diretoras do Metropolitan Museum de Nova York, o que pode sinalizar uma possibilidade de difusão internacional de uma obra já analisada por grandes nomes da crítica brasileira.
O crítico Ronaldo Brito assina o texto de apresentação da mostra. Sobre a afirmação matérica da pintura de Bakun, escreve: “Muito da força poética de Bakun deriva da sensação de presença corpórea – sentimos o artista em meio à natureza, quase indistinto, a acompanhar a sua pulsação orgânica”. Para o pintor Paulo Pasta, também autor de um texto sobre o artista no catálogo da exposição, a “materialidade precária” das telas de Bakun ajudaria a “compor a forma magistral de sua lírica”. Segundo Pasta, as melhores telas do pintor paranaense “parecem fundos de quintal, um lugar comumente caseiro, reservado, escondido, cheio de memórias”.
A sensação de incompletude dessas paisagens, que por vezes sugerem ruínas como nas telas do alemão Anselm Kiefer, foi analisada pelo crítico e historiador Artur Freitas como uma “fonte completa de significação” para Bakun. Não importa que o suporte seja por vezes precário – há muitas telas suas pintadas sobre sacos de aniagem – ou que elas pareçam simples esboços inacabados. As telas se completam com o olhar do observador – o que o próprio Milliet custou a entender, escrevendo aqui mesmo no Estadão que o “temperamento vangoghiano” e impulsivo” levou Bakun a “uma concepção perigosa da matéria”, a um “empastamento excessivo”. Para Milliet, Bakun estava numa encruzilhada: “Ou vai se perder ou, o que é mais difícil, irá por uma trilha que dará em projeção internacional”.
Palavras proféticas essas de Milliet. A recente aquisição de pinturas de Bakun por colecionadores estrangeiros aponta para a segunda alternativa. Mantida em coleções privadas, especialmente do Paraná, a obra do pintor alcança o mercado internacional com uma (ainda) tímida presença nos museus brasileiros para um artista de seu porte, cujo trabalho – autônomo como a de Guignard dentro da tradição moderna brasileira – foi insuficientemente estudado. Por exemplo, por que Bakun tangenciou movimentos como o pós-impressionismo, o expressionismo e o surrealismo (no fim da vida) sem pertencer a nenhum deles? Pode ser, como escreveu o amigo e crítico Nelson Luz (1917-1977), que Bakun não coubesse mesmo em nenhuma escola. Afinal, é o destino dos gigantes.
MIGUEL BAKUN: UMA GRANDEZA PRECÁRIA Simões de Assis Galeria de Arte. Rua Sarandi, 113-a, tel: 3062-8980. 2ª a 6ª, das 10h às 19h; sáb., das 10h às 15h. Entrada gratuita. até 14/12.
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