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‘Ocupação Maria Bethânia’: como entender a mostra que celebra o legado da cantora no Itaú Cultural

Exposição coloca Bethânia como um dos alicerces da cultura nacional, a partir da relação que ela tem com sua terra natal, no Recôncavo Baiano; público poderá ver fotos, vídeos e até um bordado da artista

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Foto do author Danilo Casaletti
Atualização:

Maria Bethânia já disse inúmeras vezes que, quando menina, sonhava em ser trapezista. Arriscar-se sem medo diante de uma plateia em suspensão. Com o irmão mais velho, Caetano, que a nomeou, brincava de faquir, como se já almejasse transcender em busca de uma perfeição. Tudo isso entre as árvores de Santo Amaro, no Recôncavo Baiano, região protagonista da liberdade e do samba de roda, onde ela nasceu.

Maria Bethânia é homenageada na Ocupação do Itaú Cultural Foto: Felipe Rau/Estadão

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Quem visitar a Ocupação Maria Bethânia no Itaú Cultural (IC) a partir desta quarta-feira, 13, verá um pouco disso tudo em dois ambientes planejados pelas curadoras Bia Lessa – diretora de pelo menos meia dúzia de shows da cantora – e Galiana Brasil, do Núcleo de Curadorias e de Programação Artística do IC.

A mostra é Bethânia não apenas em fotos, imagens ou sons – caminho banal e sedutor quando se retrata um artista popular -, mas também no sentido de colocá-la como um alicerce da cultura nacional, a partir das referências que ela carrega e imprime em sua arte em quase 60 anos de carreira. Desde aqueles aparentemente inocentes sonhos e brincadeiras de criança.

A relação com a palavra

“Bethânia não é só uma cantora ou uma intérprete. O que fez dela o que ela é? A relação dela com a palavra. O que é privado, o que é sagrado. A importância da festa”, resume Bia, sobre alguns aspectos que a nortearam na concepção do projeto.

“Queria afastar uma ocupação que fosse só um elogio. Gostaria que as pessoas saíssem dela com a ideia do que é ser cidadão, do que é ser brasileiro. A importância do compartilhar, do domínio da linguagem e do rigor”, completa Bia. Essa ideia também esteve presente no disco e show Brasileirinho, apresentado por Bethânia em 2003, com direção de Bia.

Bia sabe que Bethânia é uma pessoa repleta de ousadia artística. Teve, portanto, que fazer o mesmo. O primeiro contato do visitante é com quase 100 fotos que ocupam o saguão de entrada do Itaú Cultural. Elas estão suspensas por cordas. Rejeitaram a formalidade da parede para flutuarem em um espaço em que o público poderá percorrer livremente, fazer seu próprio caminho. Assim como a cantora o fez, rejeitando qualquer limitador. Até mesmo a Tropicália, movimento ao qual ela deu a Caetano a régua e o compasso.

Acima da cabeça do visitador, outra inversão. Sacos plásticos guardam água e terra do Subaé, rio baiano que passa por Santo Amaro para desaguar na Baía de Todos os Santos – o mesmo que Bethânia canta e clama por purificação para “mandar os malditos embora”. Não é essa, então, a sensação de uma trapezista? Onde está o chão e onde está o céu?

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Abaixo de cada foto, refletidas no piso, frases de Bethânia e outras personalidades, como Clarice Lispector, Patativa do Assaré e Gilberto Gil. Uma delas, contudo, conecta imediatamente ao que o visitador encontrará na segunda sala, que abriga uma instalação composta por 47 monitores que exibem imagens documentais que totalizam 1h45 de duração: “a poesia não tem só lugar nobre para acontecer”, do poeta Wally Salomão.

.Na foto, as curadoras da 'Ocupação Maria Bethânia' Bia Lessa e Galiana Brasil Foto: Felipe Rau/Estadão

Para uma cantora em que o espaço é fundamental, o vídeo, em um de seus momentos, passeia pela festa de Santo Amaro da Purificação que até hoje parte da casa da família Veloso para ocupar as ruas da cidade.

“Não é à toa que lá nasceram Bethânia, Caetano, (o escultor) Emmanuel Araújo e o (compositor) Roberto Mendes. Há uma tradição da religiosidade e da festa juntos. Uma liberdade incrível. Sem culpa ou pecado”, diz Bia.

Festa e devoção

O bordado 'Rota do Abismo', feito por Maria Bethânia Foto: André Satti/Itaú Cultural

O trecho que o Estadão assistiu traz padres negros adentrando a igreja matriz da cidade. Do lado de fora, fogos de artifício, diversão, católicos e praticantes de religiões de matrizes africanas em consagração. “Na porta da igreja, tem gente bêbada, beijo na boca, show de luzes. Na hora que Nossa Senhora sai, há um silêncio total”, descreve Bia.

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Para Bia, tudo tem a ver com a educação. “Uma família em que o pai recitava Camões em casa. Uma casa aberta para a comunidade. Uma cozinha com panelas grandes para quem deseja comer. A comunidade é a semente. Esse é o país glorioso que a gente deseja e está na arte de Bethânia”.

A Ocupação também exibe dois bordados que a cantora produziu durante a pandemia, em um momento de isolamento e de palcos e plateias vazios. Um deles, batizado de Rota do Abismo, traz a relação da cantora com a palavras e como elas são capazes de atingir em cheio o sentimento - dela e do público. No outro, a visão que Bethânia tem do céu de sua terra natal. Em ambos, a essência da Ocupação.

Quem não rezou a Novena de Dona Canô?

O casal Dona Canô e Zezinho, pais de Maria Bethânia Foto: Acervo de Fam

Maria Bethânia. Fevereiros. Santo Amaro. Amor, festa e devoção. Elementos que estão nessa Ocupação Maria Bethânia. Bia os assimilou vendo-os de perto, na cidade em que Bethânia nasceu. “Depois que fui para lá, eu disse: nunca mais vou a Paris. Ali tem tudo”, diz.

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Bia, convocada para dirigir a turnê que Bethânia e Caetano farão juntos neste ano, tem a consciência de que a Novena de Dona Canô, como ela existe e resiste até os dias de hoje, tem os braços fortes e a alma santamarense dos filhos de Canô e Zezinho. “As pessoas têm que ir. Está acabando”, alerta.

Maria Bethânia, 77 anos, sim, está viva. Quente. Plena no dom que Nossa Senhora lhe deu – em vídeo que está na exposição, a cantora diz não ter intimidade para falar direto com Deus, por isso recorre a sua mãe, segundo a crença católica.

No entanto, no show de despedida da turnê Fevereiros no último dia 10 de março, em São Paulo, ao ser chamada ao palco pelo público para um segundo bis, Bethânia disse: “Iaiá está cansada”. Caberá aos seus súditos – eles a chamam de “rainha”, inspirados por Wally Salomão -, no futuro, recolherem as folhas que ela espalhou com sua música e se banhar nas águas onde ela pisou. “Bethânia é raiz e antena. Ela, sim, é trapezista. Está sempre no risco”, resume Bia.

Uma programação para além da ocupação

Maria Bethânia em muitas telas na Ocupação Foto: FELIPE RAU

Maria Bethânia tem suas singularidades. A Ocupação também. Para conectar o térreo, local onde estão expostas as fotografias, ao primeiro andar, que abriga a sala de vídeo, o visitante que optar pela escada vai ser recebido pelo vento, outro elemento cantado por Bethânia na figura de Iansã, divindade associada aos ventos e as águas nas religiões de matrizes africanas. Dentro da sala, haverá água, sempre em movimento.

Para Galiana Brasil, do Itaú Cultural, Bethânia dá uma dimensão de Brasil e uma Bahia muito específica. “É importante trazer esse território e sonoridade para essa Avenida (Paulista)”, diz. Segundo ela, a mostra, nesse sentido, atinge uma dimensão pedagógica, da Bahia negra e indígena. “Bethânia é polifônica. É difícil encerrá-la em apenas um lugar”.

Galiana afirma que as mostras que o Itaú Cultura têm atraído uma mescla geracional - recentemente, a instituição realizou ocupações do geógrafo Milton Santos e do escritor Machado de Assis. Em julho, o homenageado será o músico pernambucano Naná Vasconcelos.

Por estar em uma avenida, as exposições recebem, muitas vezes, o público que está de passagem. “Eles entram e descobrem algo diferente. A Bia, nesse proposta, trouxe a suspensão dessa avenida. No térreo, será possível fazer seu próprio percurso entre as fotos, se perder no tempo”, diz Galiana.

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A Ocupação Maria Bethânia terá, ainda, uma programação musical. No quinta-feira, 14, às 20h, o bloco de carnaval Explode Coração, dedicado ao repertório da cantora, se apresenta no auditório do Itáu Cultural. Haverá ainda apresentações do músico Moreno Veloso (dias 15 e 16/3), sobrinho de Bethânia, e do compositor Roberto Mendes (17/3), outro filho de Santo Amaro.

Ocupação Maria Bethânia

  • Abertura: 13/3, às 20h
  • Itaú Cultural. Avenida Paulista, 149, Metrô Brigadeiro
  • De terça a sábado, das 11h às 20h; domingos e feriados, das 11h às 19h. Até 9/6. Gratuito
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