Sobre Giacometti, uma das referências da artista Flávia Ribeiro em sua exposição Continuum, Sartre dizia ter o escultor um rosto antediluviano de um homem de Altamira, uma “silhueta indistinta caminhando no horizonte”. Logo à entrada da mostra, uma figura humana de costas, giacomettiana e obscurecida pelo negrume da noite eterna, entre o ser e o nada – para usar uma expressão de Sartre – traz nas mãos uma pequena escultura de bronze que remete à maquete da casa da própria Flávia (obra exposta ao lado), funcionando como um convite para entrar em seu mundo particular, povoado de “silhuetas indistintas”. Em três salas, o visitante poderá acompanhar o trabalho da artista entre 2014 e 2021, duros anos em que a artista paulistana, lutando contra (e vencendo) a morte, produziu alguns de seus mais notáveis trabalhos.
Com curadoria do filósofo Henrique Xavier, Continuum reúne desenhos, esculturas em bronze e gravuras estreitamente ligados e desdobrados uns nos outros – o título Continuum, esclarece a artista, diz respeito ao uso de um conceito de Einstein sobre a indivisibilidade do espaço e tempo e a unidade entre sujeito e objeto por Lawrence Durrell, como deixou claro o autor britânico em seu Quarteto de Alexandria, tetralogia com personagens cujas histórias se fundem. Durrell, a título de observação complementar, encontrou a resposta para o enigma da individuação, recorrendo ao que chamou de “realidade heráldica”, ou seja, respeitando o poder do mito.
Flávia Ribeiro, além do forte vínculo que seu trabalho tem com a literatura e o mundo mítico, tem com Giacometti uma outra afinidade: o poder de tornar denso o espaço, formando um amálgama com as formas de suas esculturas que – de modo consciente ou não – remetem às “celas’ (ou jaulas) em que o escultor suíço encerrava seus homens delgados, no limiar do desaparecimento. A diferença é que Giacometti foi buscar essas formas na arte dos etruscos para evidenciar a crise do homem moderno reduzido a nada. Flávia vai por um caminho não existencialista, buscando como referências seus contemporâneos.
A artista, nascida em 1954, frequentou nos anos 1970 a Escola Brasil. Um de seus mestres foi o escultor José Resende que, de modo semelhante, experimentou todo tipo de material, do clássico bronze à parafina. Há na exposição uma obra que, de modo irônico, ela batizou de Pintura – díptico com uma tela negra, à maneira de Ad Reinhardt, mas feita com cera, e outra abóbora, que usa guache. Como se sabe, Reinhardt dizia que sua tela negra seria a última pintura que um artista poderia fazer. A definitiva. Flávia, então, brinca com a própria morte, como, aliás, em outras peças da exposição.
A figura da entrada da exposição, por exemplo, é reduzida na segunda sala a um faixa preta na parede e um luminoso tapete amarelo no chão. Sempre o embate entre luz e treva, com o ouro seguindo a tradição de Bizâncio. “O ouro tem exatamente esse papel”, assegura a artista. Flávia busca não uma estilização de Giotto, mas uma composição que seja autenticamente interior, fruto da observação do mundo real – há, na mostra, até desenhos de insetos que circulam por seu ateliê.
Quando Flávia fez uma exposição no Instituto Figueiredo Ferraz há dois anos, o curador Henrique Xavier, a esse respeito, escreveu que o ouro pontuava “delicadamente” a mostra, referindo-se em particular à obra Duplo Figurado, imagem fotográfica que apresenta duas mãos sustentando uma esfera dourada (como a da citada figura da abertura desta exposição). É o ouro, em sua solenidade monumental, que revela a presença dessa imagem humana em tamanho real, como, no passado, o ouro distinguiu a figura dos santos dos mortais (a exemplo de Giotto, para voltar mais uma vez ao século 14).
Flávia, na terceira e última sala da exposição, diz que o conjunto de desenhos produzidos entre 2017 e 2019 faz referência a esculturas instaladas no mesmo espaço, tornando clara sua intenção de convidar o espectador a entrar no ‘continuum’ espacial do objeto, que era também o desejo de Giacometti, segundo o crítico David Sylvester.
Não importava tanto a existência física das esculturas do suíço, mas a interação do espectador com seus objetos, tornando essencial sua presença para a existência da obra – daí que muitos desenhos parecem esculturas e vice-versa, cabendo ao espectador definir sua natureza. Uma exposição, enfim, cuja energia parece infindável para quem esteve tão perto da morte.
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