Em 1969, aos 23 anos de idade, Carmela Gross mostrava um grupo desafiador de trabalhos na 10ª Bienal de São Paulo. Barril, Presunto e A Carga corporificavam elementos tirados da instável paisagem urbana. Eram signos vindos diretamente do cotidiano dos trabalhadores das cidades, mas que, indiscutivelmente, remetiam também à cena opressiva do momento. Tortura, desova de corpos, ações furtivas e dissimuladas eram questões ali presentes de forma intensa, numa crítica mordaz à ditadura militar. O próprio aspecto gasto dos objetos, construídos em lona desbotada, plástico e ferro gasto, traz à cena essa sensação de precariedade. O retorno desses mesmos trabalhos à 34ª Bienal de São Paulo, que tem início no sábado, 4, não é mera coincidência. É claramente uma forma de conexão simbólica e crítica entre dois momentos opressivos da história do Brasil.
Cercadas por outras obras de cunho histórico e crítico – como as gravuras de sombras de armas bélicas, de Regina Silveira, ou o texto propositivo da performance Ronda da Morte, projeto nunca realizado de Hélio Oiticica – essas peças fazem remissão direta ao tema da mostra: Faz Escuro mas Eu Canto. O verso provém de um poema de Thiago de Mello dá à edição do evento um caráter de resistência, de desejo de reunir discursos e práticas artísticas que confrontem o desmanche atual. Entretanto, apesar de seu forte peso simbólico e histórico, esses objetos propostos por Carmela no passado e reconfigurados no presente não são o trabalho mais explosivo, literalmente, da artista nesta Bienal. A noção de fogo, luminosidade e risco é frequente em sua produção. E volta agora com carga redobrada no grande painel de 30 metros de comprimento por 6 metros de altura, formado por 160 monotipias em torno da imagem de vulcões, intitulado Boca do Inferno, em clara relação com o codinome de Gregório de Matos e sua violenta crítica social. Não se tratam de representações literais de crateras, magma ou material vulcânico, mas sim do resultado de um lento processo de apreensão e elaboração poética de um conceito; se assemelham a manchas, pegadas repetitivas em torno desse elemento que tanto nos atrai e apavora. “Elas remetem à ideia de vulcão, de explosão e de grande impacto, da terra que se convulsiona e que fica carbonizada quando traduzida no preto”, explica a artista.
O resultado final desse processo ganhou corpo em duas sessões de trabalho no ateliê de gravura da Fundação Iberê Camargo em Porto Alegre, com o auxílio de Eduardo Haesbaert, que dirige a oficina. Mas ele ainda não estava concretizado quando os curadores da mostra, Jacopo Crivelli Visconti e Paulo Miyada, viram os desenhos preparatórios e o elegeram como um dos elementos medulares do projeto da 34º Bienal. Há, na persistente transfiguração que ela faz desses resíduos vulcânicos, uma conexão poética, visual e simbólica com aquele que foi eleito um dos enunciados da mostra: o meteorito que pertencia ao Museu Nacional. Ao simbolizar parte do acervo que conseguiu sobreviver ao incêndio, exatamente por ser uma densa massa metálica endurecida, materializa a noção de resistência. Na frente de Boca do Inferno, foi instalado o meteoro Santa Luzia (cujo nome surpreendentemente remete à protetora da visão), como forma de corporificar essa e outras tragédias porque vêm passando as instituições culturais brasileiras. “A cultura brasileira parece estar sempre pegando fogo”, lamenta ela, enfatizando a importância desse movimento de reforço da prática do artista, do exercício poético em busca de algo coletivo, como se vê expresso na proposta da Bienal. O tema ígneo não está presente apenas na obra principal de Carmela para a Bienal. Ele se faz presente em dois outros eventos em torno de sua obra, que podem ser vistos neste momento. É o assunto da grande peça que ela fez para a empena da fachada do MAM, no Rio de Janeiro, e que também deve ser aberta ao público no dia 4 de setembro. Com um forte impacto visual, sobretudo no período noturno, a grande instalação resgata a prática das obras públicas, de diálogo entre a arte e a cidade, que parece abandonada nos tempos mais recentes. O público paulistano poderá ver uma versão bem menor do luminoso na exposição Fendas e Fagulhas, em cartaz na Galeria Vermelho em São Paulo. Nos dois painéis, a abstração das manchas negras da Bienal dão lugar a uma representação mais lúdica de um vulcão, corporificando em feixes de luz as faíscas das erupções. Em tons de amarelo, laranja ou vermelho, remetem às grandes publicidades luminosas que encantam a artista desde a infância. Há na mostra paulistana um outro trabalho fundamental nesse processo de experimentação, desenvolvimento intuitivo e desdobramentos múltiplos em torno da combustão. Trata-se do filme Luz del Fuego II, exibido pela primeira vez em Porto Alegre em 2019. Na obra, vemos uma sucessão de imagens colecionadas por ela: cenas de incêndio, explosão, muitas delas das instituições culturais que queimaram no País nos últimos tempos. Todo o filme é preto e branco e em negativo, o que dá a cada imagem individual, e ao conjunto, um aspecto radioativo, terrivelmente sedutor e assustador. Como se não bastasse, no segundo andar da galeria é possível ver um dos mais intensos trabalhos gestados na pandemia: a série Cabeças. Por meio de 256 recortes, que são muitos e ao mesmo tempo um só, a artista cria um enorme painel um tanto desordenado dessas figuras antropomórficas. Para criá-los, Carmela partiu de borrões de nanquim criados aleatoriamente sobre papel e depois lhes deu formas humanas, rasgando seus contornos, olhos e bocas com as mãos, como numa primitiva versão das sombras chinesas. A precariedade é evidente nas formas brutas das fisionomias, que parecem espectros frágeis e um tanto monstruosos. Diferentemente da série de monotipias reunidas na Bienal, que estão soltas no espaço, fixas apenas com imãs sobre barras de ferro, essas Cabeças estão separadas entre si, emolduradas uma a uma, o que remete à ideia de janelas. Ou telas, numa angustiante e aparente incomunicabilidade.
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