Antes de propor um conceito aos artistas participantes da 36.ª edição do Panorama da Arte Brasileira, Sertão, que será aberta no sábado, 17, no Museu de Arte Moderna (MAM/SP), a curadora da exposição, Júlia Rebouças, buscou adaptá-lo às obras dos participantes de várias regiões do País, não necessariamente de clima semiárido. Há na mostra artistas de Estados como Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro ao lado de representantes da Bahia, Piauí, Maranhão, Pará e Minas, todos muito diferentes entre si. Em síntese: a curadora viajou pelo Brasil todo em busca da diversidade, tentando encontrar “uma condição-sertão que funda outra existência e que não se deixa confinar”. E escolheu 29 artistas e dois coletivos empenhados em mostrar que sertão não é sinônimo de aridez ou vazio, mas, ao contrário, pode significar força e resistência a um projeto colonial de tutelar a arte e o homem.
“É incrível como uma palavra tão importante para a cultura como sertão não conseguiu encontrar tradução em movimentos artísticos ou literários, seja no Cinema Novo ou no Armorial”, observa a curadora, que espera dar sua contribuição a um estado existencial que supera a situação geográfica do semiárido. “Sertão, para mim, é o que não se vê, não se alcança, é quase o oposto do Panorama”, define. Nessa desconstrução sertaneja, que descarta as palavras aridez e pobreza para mostrar uma região de muita potência, Júlia Rebouças busca uma nova narrativa que possa, eventualmente, recontar a história de um país que colocou em confronto litoral e interior por meio de um novo pacto social que reconheça a alteridade.
Sergipana de Aracaju, a curadora não selecionou nenhum artista de sua região, justificando: “O sertão sergipano é ocupado pela pecuária, diferente do sertão baiano, mas não foi essa a razão da ausência de representantes, porque, para mim, o sertão pode estar na Avenida Paulista ou em Cuiabá”. Muitos tentaram uma definição para o sertão brasileiro mas até Guimarães Rosa, segundo ela, falhou na missão – “ele recorreu à negação”. Nonada. Rosa, sim, teve o mérito de inserir o sertão nas discussões sobre a formação do País. E é por isso que o Panorama do MAM existe, trazendo para o público de São Paulo artistas como Lise Lobato, de Belém, Gervane de Paula, de Cuiabá, Maxim Malhado, de Salvador, Santídio Pereira, do Piauí, e Paulo Setúbal, de Goiânia.
Um dos artistas participantes do Panorama, Maxim Malhado, de Ibicaraí, Bahia, morava no sertão. Hoje vive no litoral. São dele os estranhos objetos híbridos que parecem ter saído de uma peça de Beckett: uma escada de madeira acoplada a um engradado não sugere exatamente uma reflexão sobre o sertão, tema da exposição do museu, mas coloca diante do espectador um enigma visual tão perturbador como as pinturas e instalações do artista Antonio Obá, nascido na Ceilândia, cidade-satélite de Brasília. Na obra de Obá, a história do “Brasil profundo” pode ser resumida na figura de uma negra segurando dois felinos nos braços – uma representação metafórica da “mãe gentil” do hino. Ou na figura de um negro com a “cabeça feita” no candomblé ao lado da sombra de uma cruz, signo máximo do cristianismo. “Isso também é sertão”, justifica a curadora da mostra, Júlia Rebouças, mostrando que a violência contra os cultos de origem africana pode ser tão corrosiva quanto o sol do semiárido.
Antonio Obá, aos 36 anos, que vive e trabalha em Taguatinga, no Distrito Federal, fez de sua arte um veículo para discutir aspectos de formação da cultura brasileira, seja o sincretismo religioso ou o preconceito étnico. A falta de trânsito interclassista, que caracterizava a sociedade colonial e persiste na contemporânea, é seu tema – e, por consequência, a marginalização do negro e do mestiço. Com certeza é um dos destaques deste Panorama ao lado do mineiro Desali, de Contagem, que, também aos 36 anos, tem sido indicado para prêmios (como o Pipa) e participa da mostra com fotos e três séries de pinturas realizadas desde 2006.
Desali é um talento. Por vezes pode evocar as máscaras de Basquiat ou rígidas paisagens desconstruídas de Diebenkorn, mas o que lhe interessa não é tanto a boa pintura, até mesmo porque Desali é irreverente com a tradição. A periferia, as camadas sociais esquecidas pelo poder e a energia que emana desses deserdados é o que move sua narrativa pictórica. Outro mineiro, Randolpho Lamonier, de 31 anos, arranjou outro meio de tocar no tema da fronteira entre diferentes categorias: bordou a casa de dois andares sonhada por sua mãe. Entre a periferia de sua cidade natal, Contagem, e os centros urbanos, Lamonier, a exemplo de Leonilson, trata de temas públicos numa esfera privada.
É uma obra política, como a maioria dos trabalhos expostos no Panorama deste ano. Algumas são mais explícitas, como Algumas Escaparam, de Regina Parra, paulistana de 35 anos, uma das jovens mais promissoras de sua geração, que teve recentemente uma obra sua (A Grande Chance) adquirida pela Pinacoteca do Estado. Parra denuncia em sua obra a violência contra a mulher – no caso específico de seu trabalho no Panorama, a “caça” feita por estupradores no meio rural. A arqueologia da violência é seu tema, assim como de outros expositores, entre os quais uma rapper transexual, Rosa Luz, do Distrito Federal, negra, rapper, que postou vídeos e virou cantora – ela aparece em seu primeiro clipe.
Ainda sobre a questão dos marginalizados, a artista baiana Vânia Medeiros apresenta no Panorama trabalhos da série Caderno de Campo, feita com a colaboração de operários da construção civil e prostitutas. Nos desenhos das mulheres, feitos com uma inocência pagã, é possível cruzar a fronteira do preconceito e identificar neles uma liberdade poucas vezes identificada em exercícios eróticos de profissionais da arte. Em registro semelhante opera Raphael Escobar, que há dez anos trabalha na recuperação de jovens marginalizados por meio da arte, cuidando da educação não formal em instituições como a Fundação Casa.
Um artista egresso da Rocinha, Maxwell Alexander, de 29 anos, é um exemplo de pintor que fez o próprio caminho, criando a Igreja do Reino da Arte e realizando um projeto revolucionário: ele embala suas telas e deixa essas obras nas ruas. Maxwell já fez residência artística em Londres, mas não se impressiona. São nomes como ele, Santídio Pereira e Luciana Magno que irão contar a nova história do sertão. E do Brasil.
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