Um artista popular como o sergipano Véio (Cícero Alves dos Santos), de 67 anos, se encontra com uma artista de formação erudita, a paulistana Erika Verzutti, de 44 anos, que estudou em Londres. Um pintor considerado um dos vetores da arte contemporânea, o gaúcho Iberê Camargo (1914-1994), divide a sala com outro popular, o mineiro Amadeo Lorenzatto (1990-1995), que começou sua carreira pintando paredes. A exposição Uma Coleção Particular, que a Pinacoteca abre hoje, com entrada gratuita, foi pensada, segundo seu curador José Augusto Ribeiro, “para além de associações por afinidade”. Muitas aproximações entre os 50 artistas integrantes da mostra, aliás, apontam para contrastes formais que transformam cada uma das 12 salas no primeiro andar do museu num campo vetorial em que os artistas são fluidos a se mover no espaço em ritmo desencontrado.
Há, por vezes, uma convergência de linguagem entre artistas de diferentes gerações e afinidades que se tornam mais explícitas à medida que o visitante percorre cada uma das salas, visita essa que pode começar pelo octógono, em que um artista da nova geração, o paranaense Vanderlei Lopes, de 42 anos, é representado por uma de suas obras mais conhecidas, Cavalo (2013), escultura em bronze do animal caído no chão. De seu corpo sai terra (sugerindo sangue), numa representação metafórica da difícil relação da contemporaneidade com a tradição clássica.
A maioria das obras exibida na mostra foi incorporada recentemente ao acervo da Pinacoteca, como o Cavalo criado por Vanderlei Lopes, doação de uma galeria particular da cidade, a Almeida & Dale. Muitas instituições têm colaborado com esse acervo. Este ano, foi firmada uma parceria para empréstimo em regime de comodato da coleção Roger Wright, empresário inglês morto num desastre aéreo, em 2009, em Trancoso, no sul da Bahia. Foram adquiridas pelo colecionador obras referenciais que hoje figuram nos livros de história da arte contemporânea, como a instalação Ping Ping (1980), do escultor carioca Waltercio Caldas, e True Rouge, de 1997, obra híbrida do pernambucano Tunga, que usa bolas de vidro, esponjas, escovas e redes. Dessas, 178 estão na Pinacoteca desde março.
“Essa instalação do Waltercio foi a segunda feita pelo artista, justamente no ano que é o marco inicial da exposição”, diz o curador. Em 1980, lembra ele, o Brasil passava por um processo de redemocratização, o circuito artístico começava a se articular com a criação de galerias e a pintura voltava ao mercado após ser eclipsada pela ditadura da arte conceitual, nos anos 1970. Os novos expressionistas alemães e os transvanguardistas italianos liberaram a pintura gestual e muitos brasileiros, influenciados por eles, formaram grupos como o Casa 7. Integrantes dele, como Fábio Miguez, Paulo Monteiro e Rodrigo Andrade estão presentes na exposição.
Até porque a pintura triunfou, projetando internacionalmente artistas como Beatriz Milhazes, mais de uma quinta parte da exposição é constituída de telas de pintores, do veterano Iberê Camargo a uma representante da nova geração, Tatiana Blass, de 36 anos, com várias exposições fora do Brasil. Ela, como outros amigos presentes na mostra, começava a carreira quando a Pinacoteca, que está completando 110 anos, passava por uma reforma (1994-1998) que ajudou a sedimentar o caminho da instituição, transformada num dos principais espaços públicos da cidade e assumindo um papel de referência no circuito internacional, como assinala o curador da mostra.
Nela estão também presentes artistas estrangeiros que se radicaram no Brasil, como a italiana Anna Maria Maiolino e o argentino Antonio Lizárraga (1924-2009). O contraste entre a vida na metrópole, registrada em pinturas abstratas por Lizárraga, e em cidades do interior é evidenciado na terceira sala do circuito da exposição com impressões digitais da gaúcha Romy Pocztaruk, de 32 anos, consagrada na 31.ª Bienal com uma série de fotos das ruínas da Transamazônica, projeto da época do general Médici que se revelou uma catástrofe.
O curador da exposição selecionou outros nomes ligados ao universo da fotografia, entre eles a mineira Rosângela Rennó, de 53 anos, cuja obra Corpo da Alma (2003), uma impressão sobre chapa de aço, lida com a questão da morte – são pessoas segurando fotos de parentes falecidos – incorporando o espectador na superfície espelhada do metal. Na mesma sala, estão obras de veteranos como a artista de origem austríaca Gerty Saruê, de 85 anos, e o paulista Rodrigo Matheus, de 41 anos, que hoje vive em Londres, provocando com suas obras que usam materiais comuns do mundo corporativo. Em Exterior, trabalho de 2013 exposto na mostra, ele faz uma assemblage de notas promissórias da antiga Brazil Railway, que construiu ferrovias no Brasil.
O pintor paulistano Paulo Whitaker, de 57 anos, agrupa e justapõe em seus trabalhos elementos de distintas épocas de sua pintura. Na obra Recepção, Administração, Produção, Distribuição (2002), o artista paulistano João Loureiro, de 43 anos, concretiza a ideia de um escritório portátil em madeira e metal algo surrealista. Finalmente, Véio, 67, está representado por uma escultura que dá nova vida a restos de um tronco cuja forma insinua a de um animal, tanto como a “avestruz” esculpida por Erika Verzutti. Há ainda outros importantes artistas na mostra. O espaço é pequeno, mas é impossível não mencionar os nomes de Mavignier, Willys de Castro (1926-1988), Regina Silveira e Carmela Gross entre eles.
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