o contrário de muitos da sua geração, o artista baiano Genaro de Carvalho (1926-1971) nunca se furtou a admitir o aspecto ornamental de sua obra, conscientemente manifesto em todas as fases de sua carreira: das primeiras pinturas até a sua consagração definitiva como pioneiro da tapeçaria mural moderna brasileira. Seguro de sua vocação e desprovido de intenções políticas, Genaro dizia não conseguir compreender o porquê de tão arraigado preconceito, visto que, segundo ele, muitas obras-primas da pintura mundial, com destaque para a chinesa e a persa, foram concebidas, primordialmente, com finalidades decorativas.
Ainda assim, para o historiador de arte e atual curador da Pinacoteca do Estado de São Paulo, Renato Menezes, a questão do ornamento em sua obra não pode ser dissociada de seu ímpeto criativo. “Criar para Genaro era uma necessidade vital, orgânica. E essa ênfase na criação pressupõe a natureza fabril de sua arte. Aquele saber empírico que decorre da observação e da prática”, como pontuou ele no texto Genaro e a Luz da Bahia. Artigo que abre e empresta seu nome para a mais recente retrospectiva do artista, em cartaz na galeria Passado Composto Século XX, em São Paulo.
Com curadoria de sua viúva, Nair de Carvalho, e de Graça Bueno, diretora da Passado Composto, trata-se de uma das mais completas mostras já realizadas em torno de Genaro, reunindo obras produzidas entre 1950 a 1971, sendo 14 tapeçarias, 15 pinturas e 7 desenhos. Trabalhos que, devidamente ancorados por farta documentação fotográfica, colocam em evidência a diversidade de cores e técnicas do artista baiano, que tem na figura feminina, na fauna e na flora brasileiras, alguns de seus temas mais recorrentes.
Com clara influência expressionista, ao lado de Carlos Bastos e Mário Cravo Júnior, Genaro de Carvalho, é considerado um dos expoentes da primeira geração de artistas modernos da Bahia. Entre 1949 e 1950, durante o período que viveu na França, participou de diversos salões de arte e se deixou influenciar, livremente, pelos grandes tapeceiros franceses da época, sobretudo por Jean Lurçat. De volta ao Brasil, se projeta como artista muralista, executando, entre outros, o seu célebre mural Festas Regionais, para o então Hotel da Bahia.
Em 1951, Genaro participa da 1.ª Bienal Internacional de São Paulo, mas foi apenas em 1955, depois de várias incursões tanto no campo do figurativismo quanto do abstracionismo, que ele realiza suas primeiras exposições com tapeçarias. No mesmo ano, durante um desfile no Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, conhece a modelo Nair Pimentel, que viria a ser tornar sua mulher e musa inspiradora por toda a vida. Juntos, o casal se transfere para Salvador em 1957, onde ela assume a administração e coordena a produção do ateliê do artista.
Autora do livro Genaro – Tecendo Memórias – editado em 2019 pela Assembleia Legislativa do Estado da Bahia e relançado no mês passado –, Nair, atualmente, além de procurar manter vivo o legado, também se dedica à tapeçaria. “Naquele encontro no Copacabana Palace nasceu um projeto de vida, de amor, de cumplicidade, de arte. Víamos a quatro olhos. Descobríamos a quatro mãos. Genaro, o mestre, o mago, de quem eu sabia e queria ser a inspiração”, relembra ela.
Genaro de Carvalho foi o primeiro artista brasileiro convidado para participar, em 1965, de um dos principais encontros internacionais do segmento, a Bienal Internacional de Tapeçaria, em Lausanne, na Suíça. Alcançou altos valores de venda para seus trabalhos além do reconhecimento de crítica e público, no Brasil e no exterior. No final de sua carreira, atendia a pedidos de tapeçarias monumentais para os mais diversos espaços públicos e teve muitas obras escolhidas para presentear personalidades como o ex-presidente francês Charles de Gaulle.
Entusiasta da obra de Genaro de Carvalho, com a presente mostra, Graça Bueno realiza o sonho de celebrar um reencontro necessário do público brasileiro com seu expoente maior nos domínios da tecelagem artística. Especialmente agora, quando o interesse pela tapeçaria vive um momento de renascimento no Brasil e no mundo. “Ao lado de Nair, estamos muito felizes em realizar a exposição e esperamos que ela entusiasme e ilumine todos os nossos visitantes com a luz da Bahia. Tal como seria, certamente, o desejo de Genaro”, comemora a galerista.
Apesar de afirmar ter encontrado sua alma gêmea e de ter alcançado, em vida, todo o reconhecimento que almejou como homem e artista, Genaro morreu prematuramente, em 1971, no auge de sua carreira, aos 44 anos. Como poucos, porém, realizou uma trajetória profissional consistente, em sintonia com seu tempo, mas sem nunca renegar suas origens genuinamente brasileiras, ou se desvencilhar da luminosidade e da tropicalidade exuberantes da sua venerada terra natal. Fatores, aliás, que ele fazia questão de enfatizar a cada nova oportunidade.
“A Bahia é minha eterna namorada, e realmente suas cores e luzes me fascinam. A luminosidade de seus poentes, o amarelo dos seus coqueiros, ora inflexíveis, ora farfalhantes. Dizer isso pode parecer lugar-comum ou letra de samba, mas é verdadeiramente o que eu sinto”, como ele afirmou certa vez, durante uma entrevista concedida a ninguém menos que uma jovem escritora, jornalista cultural e cronista de nome Clarice Lispector.
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