
Romero Britto tem consciência da finitude da vida e busca desfrutar ao máximo os prazeres da existência. Quer as pessoas gostem ou não, é inegável que o pintor pernambucano, da pobreza no Recife ao luxo em Miami, triunfou com sua arte e se tornou uma personalidade influente.
Quando criança, ele já pintava em sucatas, papelões e jornais, mas a conjuntura de uma juventude modesta o levou a prestar curso de Direito aos 17 anos. As pinceladas do destino, porém, lhe afastaram da jurisprudência e o aproximaram das telas.
Ao visitar os Estados Unidos pela primeira vez, Britto se apaixonou pela arte estrangeira e se conectou com o ‘american way of life’. Fruto do Sonho Americano, o brasileiro trabalhou em Miami como atendente em lanchonete, ajudante de jardineiro e caixa de loja antes de fazer os contatos certos e começar a disseminar suas cores vibrantes pelo mundo, com criações inspiradas em estandartes do pincel como Pablo Picasso, Henri Matisse e Andy Warhol.
Sua primeira grande oportunidade midiática foi uma parceria com a Absolut Vodka, quando a marca de bebidas o convidou para criar uma pintura para ser usada em uma nova campanha publicitária – sucesso absoluto, o anúncio estampou dezenas de publicações americanas.
Desde 1986, quando passou a morar em definitivo nos EUA, a fama só aumentou. Ao incorporar elementos de grafite e formas geométricas, ele consolidou uma identidade singular que desperta euforia dos admiradores, encantados com o conforto proporcionado por suas obras, e ódio dos detratores, enojados pelo aspecto demasiado comercial de seu trabalho.
O império colorido de Britto rende milhões de dólares por ano. Sua marca passou a ser licenciada em todo planeta e seus traços indefectíveis já se associaram a produtos da Disney, Coca-Cola, Mattel e Wilson, entre outras empresas gigantes. Com esculturas e galerias espalhadas mundo afora, ele expôs suas façanhas em mais de 120 países e também integrou projetos em mega eventos como Super Bowl, Olimpíadas e Copas do Mundo. World Landscape, a pintura mais cara à venda em seu site, é precificada em R$ 11 milhões.
Romero já pintou quadros para astros do cinema (Leonardo DiCaprio, Jane Fonda, Arnold Schwarzenegger), da música (Elton John, Michael Jackson, Madonna), do esporte (Pelé, Messi, Ronaldinho Gaúcho) e chefes de estado (Barack Obama, Dilma Rousseff, Jair Bolsonaro, a Família Real, Papa Francisco).
Apesar de tamanha glória, ele não se “deslumbra”, alega, em entrevista exclusiva ao Estadão realizada por videoconferência, direto da Flórida, dias antes de ele embarcar para o Japão, onde passará uma breve temporada fazendo exposições, após colaborar com a Sega, desenvolvedora de games, em uma coleção do personagem Sonic.
Na semana anterior à conversa, Britto fez rara viagem ao Brasil após uma década de ausência, de apenas quatro dias, para visitar o empresário Marcelo Camargo, em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. Apaixonado por Fórmula 1, Camargo recebeu das mãos do amigo uma obra exclusiva inspirada no modelo MP4/4 da McLaren, pilotado por Ayrton Senna na temporada de 1988.
Foi uma excursão atípica do pintor, haja vista que a sua conexão com o País, hoje, é quase inexistente. Basta ouvir um punhado de palavras saírem de sua boca para compreender a escassez de verde e amarelo em seu DNA: o carregado sotaque mais parece de um americano que aprendeu a falar português do que de um brasileiro radicado na pátria vermelha, azul e branca.

Geralmente adepto dos óculos escuros, o sorridente Romero, aos 61 anos, dessa vez dispensou o adereço e assumiu o brilho do olhar para responder de forma franca perguntas sobre sociedade, arte e política.
Dentre uma série de temas, ele revelou ter negado o convite para retratar o presidente venezuelano Nicolás Maduro; opinou sobre o retorno de Donald Trump à Casa Branca; a relação com Bolsonaro; e ainda comentou um escândalo que repercutiu nas redes sociais há alguns anos.
Em 2017, a dona de um restaurante em Miami ficou incomodada com a postura de Britto durante um almoço no local e foi até a galeria do pintor para destruir uma de suas esculturas, avaliada em cerca de R$ 25 mil, que havia sido comprada pelo ex-marido dela.
A inigualável trajetória do artista será retratada no documentário The Britto Doc, com lançamento previsto para o mês de maio. Ele também prepara a inauguração do restaurante temático Love By Britto a bordo de um cruzeiro da Princess Cruises.
Algumas pessoas rotulam as suas obras como ‘arte da cura’. Você concorda com esse rótulo?
Fico muito honrado que pensem que minha arte pode curar as pessoas. Se a minha arte traz alegria, um certo sentimento que faz as pessoas se sentirem bem, já é uma grande coisa, porque a minha arte realmente, quando eu estou criando o meu trabalho, me faz me sentir bem.
Como você moldou as suas influências para criar uma identidade artística?
Primeiramente, eu sempre gostei muito de um artista brasileiro, o Francisco Brennand (1917-2019). Sempre gostei da arte dele. Eu cresci nos murais de Brennand, lá em Pernambuco. Mas quando mudei aqui para os EUA, eu comecei a realmente conhecer o trabalho de outros artistas bem famosos, como o Andy Warhol, Keith Haring, Roy Lichtenstein e outros mais. Também gosto do colorido do Matisse. Gosto da composição da arte do Picasso.
Em que momento da sua carreira percebeu que seria uma boa ideia usar formas geométricas, além dessa inspiração no grafite?
Não foi uma coisa assim de uma hora para a outra. Teve toda a evolução no meu trabalho. Quando eu morava no Brasil, fiz muita aquarela. Teve um tempo que eu fiz trabalho pintando a dedo. E aqui nos EUA teve um tempo que eu fiz muito trabalho em jornal, porque eu não tinha muito dinheiro para comprar material de tinta. Então, teve toda uma jornada para eu chegar onde eu estou. Ainda estou desenvolvendo outras técnicas, é um trabalho que está evoluindo mais e mais cada dia.

O Brasil tem grandes artistas conhecidos, mas sua dimensão internacional é muito grande. Como você mantém o pé no chão?
Eu realmente sei que tudo é tão temporário. Estamos aqui agora e amanhã não vamos estar. Acho que é uma grande oportunidade poder criar minha arte, compartilhar com tanta gente e poder acordar de manhã e fazer o que eu faço. Há vários momentos que eu não acredito nem o que está acontecendo comigo, mas foi muito trabalho. Não foi uma coisa que aconteceu do dia para a noite. Pelo fato de que tem sido todo um processo, tem sido melhor para mim. Porque há muitas pessoas que vêm da pobreza e de um dia para o outro casam com uma pessoa rica ou ganham na loteria ou fazem um contrato milionário. Acontece muito com jovens na área esportiva. É bem rápido, como um relâmpago. E não foi assim que aconteceu comigo. Teve todo um processo. Eu não me deslumbrei com o que está acontecendo comigo.
Você nunca deixou o sucesso subir na cabeça ou percebeu que estava sendo meio mascarado?
Não, não, não. Porque, mais uma vez, eu quero dizer, tem sido uma grande oportunidade para mim. Realmente sei que tudo é muito passageiro e temporário. Tenho que aproveitar esse momento, nunca fiquei fora da realidade.
Você vende peças a preços milionários, mas também vende a preços mais populares. Há uma preocupação para que a sua arte não seja sinônimo de elitismo?
Eu sempre quis dividir minha arte com o grande público. E é por isso que eu fiz grandes projetos aqui nos EUA, como da Absolut Vodka, da Coca-Cola, Pepsi-Cola, da Barbie. Fiz também projetos no Brasil e em outras partes do mundo. Agora mesmo, eu fiz um projeto no Japão, com a Sega, do Sonic. Desse jeito você pode realmente trazer arte para muitas pessoas que não estão vivendo o mundo artístico todo dia. Há colecionadores que vão a museus, vão a galerias, visitam estúdios de artistas, mas também tem muita gente que, na verdade, não tem tempo de fazer isso, porque é uma vida diferente. Se você mora em um lugar muito remoto, longe das grandes capitais, você não vai ter esse acesso, mas pode ter através de outros meios.

Você enxerga alguma lógica em precificar obras de arte? Dizer que uma peça vale US$ 10 mil, outra vale US$ 100 milhões...
É todo um mercado. Por exemplo, se você tem um cavalo em que você vai apostar, se o cavalo ganhou muitas corridas você tem mais chance de as pessoas apostarem mais. E quanto mais gente quer apostar, mais elas podem pagar. E é mais ou menos como se fosse um artista. Se você tem um artista que já fez muita coisa, é muito conhecido, mais aquelas pessoas vão apostar naquele artista. No caso da arte, tem tem um período em que o artista está vivo. Mas quando o artista morre, não tem mais obra de arte para ser feita. Então, acabou. O Leonardo da Vinci não está por aqui. Então, quanto mais tempo passa, em geral, as pessoas querem mais.
De todas as celebridades para quem você pintou quadros, qual te surpreendeu mais?
O rei da Inglaterra [Charles III], e a mãe dele também, a rainha [Elizabeth II]. É uma grande alegria que o rei tenha minhas pinturas e esculturas também. Fui convidado pelo rei para um jantar no Palácio de Buckingham. Depois desse jantar, fiquei mais envolvido com a fundação dele [The King’s Foundation, que atua em áreas como educação, preservação ambiental e projetos sociais]. Fiquei 10 anos no conselho e agora sou um trustee emeritus [título honorário concedido a ex-membros da fundação].
Como é jantar no Palácio de Buckingham?
Fiquei super feliz de ter sido convidado, não só uma vez, mas várias vezes, para ir lá, ou para o Palácio de St. James, Clarence House, e Castelo de Windsor. Me encontrei com o rei várias vezes.
Mesmo assim, me parece que muita gente, especialmente em setores da classe artística no Brasil, te menospreza. É inveja?
Olha, se você vê um artista se dar bem, eu acho que você tem que ser uma pessoa muito grande, um artista muito grande, para fazer algum comentário. Porque tem pessoas que nem me conhecem, nunca vieram visitar o meu estúdio, não sabem nada do meu trabalho e, às vezes, fazem comentários [negativos]. Entendo completamente que a ignorância faz isso e a inveja também. Vivemos num mundo onde todo mundo pode falar qualquer coisa, especialmente quando você está atrás de um telefone ou de uma rede social, quando pode se esconder e não revelar quem você é.

Esse tipo de crítica já te magoou?
Teve um tempo que sim, agora não mais. Agora não importa. Porque acho que o mais importante é eu ter apoio de pessoas que eu considero. Por exemplo, eu não vou me preocupar com uma pessoa que está fazendo comentário e que não coleciona arte. Mas eu vou me preocupar mais com uma pessoa como o Carlos Slim [empresário mexicano, o homem mais rico da América Latina], que é um grande colecionador, gosta da minha arte e me apoia.
Aquele episódio no qual a mulher quebrou a sua escultura te afetou?
Eu realmente fiquei muito surpreso e fiquei em choque. Depois eu fiquei sabendo mais de como aconteceu tudo. É uma pessoa muito desequilibrada. Simplesmente fui para um restaurante, nove da manhã, para ter uma reunião com a minha equipe. Estou pagando, pedi para o volume da música ser diminuído e para os garçons não ficarem escutando a reunião, apenas trazerem a comida e o café. Não fui grosseiro. A escultura, na verdade, o ex-marido dela tinha comprado. Eu não entendo, mas tem pessoas que reagem dessa maneira.
Os americanos te acolheram melhor do que os brasileiros?
Eu tenho muitas pessoas no Brasil que adoram o meu trabalho, mas foi nos EUA que a minha arte chegou a um grande público. Aqui o poder aquisitivo é muito maior para todos. No Brasil, existem muitos artistas que se dão muito bem e pessoas que gostam da arte. A grande diferença é que nos EUA há mais pessoas com dinheiro para gastar adquirindo arte e dando apoio às artes.

Por que acha que o Trump se conecta tão bem com a população americana?
Ele realmente entende a maior parte da população. É por isso que votaram para ele voltar a ser presidente. Ele falou o que o americano queria escutar.
Você acha isso pode acontecer também no Brasil, digo, um retorno do Bolsonaro?
Eu realmente não sei porque eu não vivo no Brasil há quase 40 anos. Não mantenho o dia-a-dia do que as pessoas estão pensando, falando, a mídia e tudo mais. Não estou a par de tudo que está acontecendo no Brasil. Tento ao máximo não ficar no meio da política.
Mas quando você pinta quadros de políticos, isso gera muita discussão. Como você lida quando um político te procura?
Quando uma pessoa me encomenda uma obra de arte, só não faço caso ela seja uma pessoa terrível. Por exemplo, o pessoal da Venezuela queria que eu fizesse um quadro do Maduro. Eu realmente não fiz. Não quero minha arte em uma situação complicada.

Quando o Bolsonaro te procurou para pintar o quadro dele, você o admirava?
Olha, foi o presidente do Brasil. O Brasil tinha votado no Bolsonaro, então ele veio como representante do Brasil, eu o recebi no meu estúdio. Fiquei contente de ele ter vindo me visitar. Foi o primeiro presidente do Brasil que veio me visitar. A Dilma me convidou também, mas foi no Brasil.
Pra finalizar, a sua carreira é prova de que para a arte ser valorizada é preciso sair do Brasil?
Não quero necessariamente dizer que você tem que sair do Brasil, porque tem muitos artistas de sucesso no Brasil. Agora, se você vai mostrar a arte para o mundo, aqui é o lugar. Se você dá certo nos EUA, vai dar certo em todo lugar.