Pela primeira vez no Brasil - e no mundo -, 100 das obras mais importantes de Salvador Dalí, o mestre do surrealismo, estarão expostas ao mesmo tempo, em novos suportes contemporâneos. Quadros como A Persistência da Memória (1931), O Cristo de São João da Cruz (1951) e Construção Suave com Damascos Cozidos (1936) poderão ser contempladas em paredes gigantes, como parte integrante da mostra Desafio Salvador Dalí: Uma Exposição Surreal na FAAP. Além de quadros e esculturas, as peças também incluem criações de Dalí em áreas como ourivesaria, cinema e publicidade.
A exposição, que estreia nesta quarta-feira, 1º, no Museu de Arte Brasileira (MAB) da FAAP, aposta em tecnologia e imersão para oferecer um mergulho na obra do artista, que produziu milhares de peças durante as seis décadas em que permaneceu ativo. Mais de 100 conteúdos expositivos inéditos, incluindo um áudio-relato em formato de podcast, estarão disponíveis para o público. Na mostra, também será possível conferir uma reprodução do ateliê onde Dalí trabalhava e fazer uma viagem de realidade virtual entre suas obras.
“Esta é uma oportunidade única de ver as obras mais importantes de Dalí reunidas em um único lugar - o que seria impossível fisicamente”, explica Roberto Souza Leão, fundador do Instituto Totex, responsável pela organização da mostra. “São peças que estão espalhadas por mais de 20 museus e coleções particulares do mundo, selecionadas cuidadosamente para representar a produção mais importante de cada etapa da vida dele: desde a primeira exposição, coletiva, aos 16 anos, até a final.”
A mostra é dividida em seis áreas expositivas. Na primeira, ‘Descobrindo Dalí’, paredes retroiluminadas contam a trajetória pessoal e exibem a produção do artista, contextualizando-as junto aos acontecimentos do século 20. A segunda, ‘Dalí Poliédrico’, oferece um vislumbre de seu multitalento, reunindo trabalhos em diversas áreas. Na terceira, está uma reprodução do ateliê do pintor em Port Lligat, uma isolada vila de pescadores localizada a poucas horas de Barcelona. Nas três etapas finais, é possível participar de uma inserção sensorial nos quadros de Dalí, conhecer as experiências estéticas e científicas do pintor e mergulhar em seu universo com óculos de realidade virtual.
“Dalí, como um produtor de conteúdo à frente do seu tempo, soube explorar o que estava à sua volta em cada momento. Ele interveio no cinema, na moda, nas joias, que são pequenas esculturas”, explica Paulo Bonfá, CEO da Conteúdo Criativo, responsável pela produção geral da mostra. “A exposição mostra a dimensão de um artista que foi capaz de produzir tantas obras distintas, mas sempre com relevância e repercussão, contribuindo para que as pessoas entendam que a arte não é monolítica.”
O Ateliê Daliniano merece um destaque à parte. Hoje um museu, o espaço original era o local de trabalho preferido de Dalí - que o descrevia como ‘um caso planetário único de pacificação geográfica’. O ambiente influenciou alguns dos principais trabalhos do pintor, como El Cristo (1951), El Descubrimiento de América (1958) e os inúmeros retratos que fez de sua esposa, Gala. “É interessante porque era um ambiente prosaico”, afirma Bonfá. “As pessoas veem uma obra monumental e imaginam um espaço diferente, mas Dalí dava asas à sua imaginação em um ambiente com chão de lajotas, cadeira de palha, cavalete e uma janela com paisagem bucólica”.
Os recursos tecnológicos permitem uma visão ampliada da genialidade de Dalí. “Colecionadores e especialistas conseguiram ver detalhes até então despercebidos graças ao tamanho das peças”, conta Souza Leão. “São detalhes que, às vezes, eram indetectáveis mesmo com lupas.”
O emprego da tecnologia também democratiza a mostra, acreditam os organizadores. “No Brasil, menos de 5% da população tem iniciação no mundo da arte. Então a gente precisa democratizar o acesso, acolher o público, sem a inibição que museus tradicionais às vezes causam. A tecnologia atrai esse público”, explica Souza Leão. “Ela traz ao mesmo tempo o potencial educativo de falar da obra monumental de Dalí, do seu potencial pictórico e da sua personalidade excêntrica, abordando também sua vida e apresentando seus multitalentos”, complementa Bonfá.
Celita Procopio de Carvalho, presidente do conselho de curadores da FAAP, diz que a expectativa de público é a mais alta possível. “O Brasil é o primeiro país a receber esta exposição, sob licença e supervisão da Fundação Gala-Dalí, que, depois, seguirá para outros países. Esperamos um público amante das artes, ávido por cultura e por conhecer mais sobre esse multiartista fascinante. É um mergulho no surrealismo que promete impactar profundamente os visitantes de todas as idades”, diz. A mostra marca uma retomada da instituição ao circuito das artes.
Gênio do surrealismo
Em 2024, o Surrealismo completa 100 anos. O movimento nasceu em outubro de 1924, quando o poeta francês André Breton publicou o primeiro Manifeste du surréalisme - defendendo o ‘automatismo psíquico em estado puro’, ‘ditado pelo pensamento, na ausência de qualquer controle exercido pela razão, isento de qualquer preocupação estética ou moral.’
“Foi um movimento crucial. Surgiu em tempos de incerteza e representou um certo tipo de abertura, havia esse objetivo de abrir janelas mentais, de quebrar a ordem e as convenções estabelecidas”, explica Montse Aguer, diretora dos Museus Dalí e figura próxima ao pintor. “Foi um movimento que pretendia influenciar todos os campos do conhecimento. Queria oferecer-se como forma de viver, até de ser, e hoje está hoje integrado na cultura de massas e na cultura popular, no sentido de evocar o estranho e o misterioso.”
Embora tenha aderido ao movimento tardiamente, Dalí se tornou um nome fundamental do surrealismo. Seus quadros oníricos traziam objetos justapostos, deformados, metamorfoseados; eram repletos de imagens freudianas, mas também de seus próprios símbolos, como ovos, elefantes, muletas e formigas.
Parte desse imaginário veio de Cadaquès, vilarejo catalão onde Dalí costumava passar as férias durante a infância. Lá se deliciava, ao mesmo tempo, com o mundo microscópico da areia e com os enormes rochedos da costa - elementos que, mais tarde, apareceriam em diversas obras, como O Grande Masturbador (1929) e O Espectro do Sex Appeal (1934). Foi também em Cadaquès que Dalí descobriu a pintura impressionista.
“O próprio Dalí afirmava: ‘Eu me fiz naquelas margens, sou inseparável deste céu, deste mar, destas rochas’. Havia uma simbiose entre Dalí e a pasaigem”, conta Aguer. “A luz única, o vento tramontano, a geologia mineral e árida, indomável…são todos elementos que moldariam o seu caráter e principalmente as suas obras. A paisagem é um elemento chave na obra de Dalí e, se algum visitante a puder conhecer, abre-se toda uma nova dimensão.”
Dalí estudou na Academia de Artes de San Fernando, em Madrid, onde chamava atenção com seu estilo excêntrico. Em 1926, pouco antes de se formar, foi expulso por declarar que ninguém na Academia era suficientemente competente para avaliá-lo. Passou os anos seguintes produzindo trabalhos fortemente influenciados por Picasso e Miró, dois artistas que havia conhecido pessoalmente.
Mas foi no Surrealismo que Dalí se encontrou. O pintor já tinha tido contato com o movimento, mas aderiu ao grupo em 1929. Uma vez integrado, assimilou rapidamente as ideias dos surrealistas, especialmente as de Yves Tanguy. Em pouco tempo, eclipsou seus colegas.
Dalí fez contribuições importantes ao surrealismo. Em 1930, criou o método paranoico-crítico, uma técnica que consistia em invocar um estado paranoico com objetivo de desconstruir o conceito psicológico de identidade, de tal forma que a subjetividade se tornasse o aspecto principal da obra de arte. Sob ele, a produção de Dalí amadureceu rapidamente. “Hoje, se pedíssemos à maioria das pessoas que pensassem numa palavra relacionada com o Surrealismo, provavelmente o nome ‘Dalí’ seria a primeira resposta que lhes viria à mente”, afirma Montse. “Ele trouxe uma nova visão ao aderir ao movimento surrealista.”
O pintor se tornou, nas palavras da historiadora da arte Dawn Ades, “a figura mais exótica e proeminente do surrealismo”. Ênfase em ‘figura’: não só seus quadros desafiavam as convenções, mas também sua personalidade irônica, extravagante e, por vezes, ofensiva. Dalí aprendeu a manipular a mídia a seu favor, criando situações que garantiam aparições em jornais e revistas da época. Mais tarde, artistas como Andy Warhol, David Hirst e Jeff Koons se aproveitariam do mesmo expediente.
Em 1939, Dalí foi expulso do movimento surrealista, acusado de ser simpático a Hitler e ao fascismo. Entre 1940 e 1955, morou nos Estados Unidos, usando boa parte de seu tempo para projetar cenários de teatro, interiores de lojas de moda e joias. Mais tarde, o pintor abraçou o catolicismo e introduziu iconografia e temas religiosos em suas obras, culminando na fase que chamou de ‘Misticismo Nuclear’, uma fusão da física einsteiniana, do classicismo e do misticismo católico. Nos seus últimos anos, testou ilusões de ótica, trocadilhos visuais, pontilhismo e holografia, tornando-se uma influência importante também na pop art.
Para Aguer, Dalí “foi um artista que, com um profundo conhecimento do passado, projetou a sua visão para o futuro”. “É um artista que nos provoca e mexe e nos faz questionar a nossa visão da realidade. Acima de tudo, através do seu trabalho, Dalí nos ensina a olhar.”
Desafio Salvador Dalí: Uma Exposição Surreal
- Data: de 1º de maio a 30 de junho de 2024
- De terça a domingo das 10h às 21h (última entrada às 20h)
- Local: MAB FAAP | Rua Alagoas, 903 - Higienópolis - São Paulo
- Preço: R$ 60 (inteira) e R$ 30 (meia entrada)
- Idade: livre para todas as idades
- Mais informações no site.
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